O
conceito de cidadania planetária tem a ver com a consciência, cada vez
mais necessária, de que temos uma identidade terrena, somos terráqueos,
temos um destino comum
como seres humanos. E não só: somos seres que fazemos parte de outro
ser, a Terra, que é também um ser vivo e em evolução, que nos acolhe e
nos mantém vivos e se mantém vivo. Somos Terra.
A
esse sonho possível de uma única comunidade humana, chamamos de
“planetarização”. Ela se opõe radicalmente à globalização que exclui,
segrega, degrada, divide o mundo
em globalizados e não globalizados; ela promove a guerra e coloca em
risco a sobrevivência do próprio planeta e de nossa espécie.
No
processo de construção da planetarização, a educação joga um papel
fundamental. Por meio dela, formamos seres humanos capazes de perceber a
interdependência, seja
entre nós, terráqueos, seja entre todas as formas de vida; estejam elas
na água, no ar ou na terra; estejam elas próximas ou distante de nós,
visíveis ou imperceptíveis.
(...)
Estamos às vésperas da realização da Rio+20 que está gerando enormes
expectativas inclusive no campo da educação. É um momento propício para
relembrar o lema
do Fórum Global da Rio-92: “A terra é uma só nação, e os seres humanos, os seus cidadãos”,
que tem tudo a ver com os objetivos do Programa Educação para a Cidadania Planetária
de Osasco. A cidadania planetária é uma ideia força poderosa que
pode transformar nossos currículos escolares. Uma cultura de paz e de
sustentabilidade é possível e necessária em nossas escolas, cada vez
mais pressionadas por um entorno violento e insustentável.
(...) A globalização2,
impulsionada pela tecnologia, parece determinar cada vez mais nossas
vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia a dia, por serem
tomadas muito distante de nós, parecem nos escapar, comprometendo nosso
papel de sujeitos na história. Tentam nos convencer
de que não há o que fazer, a não ser aceitar as consequências do mundo
globalizado. Alguns de seus efeitos mais imediatos são: o desemprego, as
crises cíclicas, o aprofundamento das diferenças entre os poucos que
têm muito e os muitos que têm pouco, a perda
de poder e de autonomia de muitos Estados e nações. Mas não é bem
assim. Esse é um tipo de globalização, o “globalista” (IANNI, 1996) ao
qual estamos submetidos hoje: a
globalização capitalista.
Dentro deste complexo fenômeno, podemos distinguir também a
globalização econômica, realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania.
Ambas se utilizam da mesma base tecnológica, mas com lógicas opostas. A
primeira, submetendo Estados e nações, é comandada pelo interesse
capitalista; a segunda
globalização – a outra globalização, como é chamada por Milton
Santos (2000) –, é a realizada através das organizações da sociedade
civil global. Essas organizações se reuniram pela primeira vez, no Rio
de Janeiro, em 1992, no
Fórum Global ECO 92, um evento dos mais significativos do final
de século 20, dando um grande impulso à globalização da cidadania. Foi o
Fórum Global ECO 92 que gerou importantes documentos “planetários”,
como a
Carta da Terra e o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Hoje temos ainda a
Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014) que está se constituindo num fator importante de construção de uma
cidadania planetária, um dos grandes motes da ECO 92.
2
O termo globalização tornou-se a denominação mais satisfatória do
período histórico pós-Guerra Fria (FALK, 1999). Este período
caracteriza-se por processos econômicos, políticos e culturais
de escala mundial e transnacional, onde os meios de comunicação e suas
tecnologias permitem acelerar a circulação de informações e fluxos
financeiros. Mais do que em qualquer outro aspecto, é no econômico que o
fenômeno da globalização tem sua origem e principal
objetivo, pautando sua atuação em investimentos financeiros e expansão
do modo de vida capitalista. Modo de vida, pois é nele que se encontra a
mais importante consequência da globalização: a construção de um
sistema cultural homogeneizante. Conforme Wagner
Ribeiro, “há quem afirme que estamos diante de um ‘cidadão global’, que
está inserido no universo do consumo, o que destoa completamente da
ideia de cidadania” (RIBEIRO, 1995, p. 18-21). Em oposição a essa
homogeneização, Milton Santos concebe que
"cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo
dialeticamente". (SANTOS, 2002, p. 339).
Mais
de dois séculos atrás, em 1784, Kant observou que nosso planeta é uma
esfera, e extraiu consequências desse fato reconhecidamente
banal: como permanecemos na superfície dessa esfera e nela nos movemos,
não temos outro lugar para ir e, portanto estamos destinados a viver
para sempre na vizinhança e companhia de outros. A longo prazo, manter a
distância, que dirá ampliá-la, está fora de
questão: nosso movimento em torno da superfície esférica acabará
reduzindo a distância que pretendíamos alargar. E assim die volkommende
bürgeliche Vereinigung in der Menschengattung (a perfeita unificação da
espécie humana por meio de uma cidadania comum)
é o destino que a Natureza nos reservou ao nos colocar na superfície de
um planeta esférico. A unidade da humanidade é o derradeiro horizonte
de nossa história universal. Um horizonte que nós, seres humanos,
estimulados e guiados pela razão e pelo instinto
de autopreservação, estamos destinados a perseguir e, na plenitude do
tempo, alcançar. Mais cedo ou mais tarde, advertiu Kant, não haverá uma
única nesga de espaço vazio onde possam procurar abrigo ou resgate os
que considerem os espaços já ocupados muito
apinhados, inóspitos, inconvenientes ou inadequados. E assim a Natureza
nos obriga à visão da hospitalidade (recíproca) como o preceito supremo
que precisamos — e acabaremos sendo forçados a — abraçar e obedecer
para pôr fim à longa cadeia de tentativas e
erros, às catástrofes causadas por esses erros e às devastações que
elas deixam em sua esteira.
Os
leitores de Kant puderam aprender tudo isso em seu livro dois séculos
atrás. O mundo, contudo, mal prestou atenção. Parece
que, em vez de escutar atentamente seus filósofos, sem falar em seguir
suas advertências, prefere homenageá-los com placas. Os filósofos podem
ter sido os principais heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a
tragédia épica pós-iluminista quase apagou suas
falas. Preocupado em arranjar o casamento das nações com os Estados,
dos Estados com a soberania e desta com territórios cercados por
fronteiras estritamente fechadas e diligentemente controladas, o mundo
parecia perseguir um horizonte bem diferente daquele
traçado por Kant. Durante 200 anos, o mundo se ocupou em fazer do
controle dos movimentos dos seres humanos uma prerrogativa exclusiva dos
poderes estatais, em erigir barreiras àqueles que não era possível
controlar e em lotá-las de guardas atentos e fortemente
armados. Passaportes, vistos de entrada e saída, alfândegas e controles
de imigração foram invenções originais da moderna arte de governar.
O
advento do Estado moderno coincidiu com a emergência das "pessoas sem
Estado", os sans papiers, e da idéia de unwertes Leben,
a reencarnação mais recente (5) da antiga instituição do homo sacer.
Derradeira personificação do direito soberano de descartar e excluir
qualquer ser humano que tenha sido lançado além dos limites das leis
humanas e divinas, e de transformá-lo num ser a que
as leis não se aplicam e cuja destruição não acarreta punições, despida
que é de qualquer significado ético ou religioso.
A derradeira sanção do poder soberano moderno resultou no direito de exclusão da humanidade.
Poucos
anos depois de Kant ter publicado suas conclusões, surgiu outro
documento, mais curto, que teria, nos dois séculos de história
seguintes, bem como nas mentes de seus principais atores, um peso muito
maior que o livrinho do filósofo. Era a Déclaration des Droits de
L'Homme e du Citoyen, em relação à qual Giorgio Agamben observaria, com o
benefício de uma perspectiva de 200 anos, não
estar claro se "os dois termos [homem e cidadão] deveriam identificar
duas realidades distintas" ou se, em vez disso, o primeiro deles sempre
quis dizer "já contido no segundo" (6) - ou seja, o portador dos
direitos era o homem que também fosse (ou na medida
em que fosse) um cidadão.
Essa
falta de clareza, com todas as suas conseqüências repulsivas, fora
observada antes por Hannah Arendt num mundo que rapidamente
se enchia de "pessoas deslocadas". Ela relembrou a antiga premonição de
Edmund Burke, genuinamente profética, de que o maior perigo para a
humanidade era a abstrata nudez de "não ser nada além de humana" (7).
"Os direitos humanos", como Burke observou, eram
uma abstração, e os seres humanos não poderiam esperar que eles
garantissem muita proteção, a menos que essa abstração fosse preenchida
com a substância em que consistiam os direitos dos ingleses ou
franceses. "O mundo nada descobriu de sagrado na abstrata
nudez do ser humano", como Arendt resumiu a experiência dos anos que se
seguiram às observações de Burke. "Os direitos do homem, supostamente
inalienáveis, mostraram-se inaplicáveis ... onde quer que tenham
aparecido pessoas que não eram mais cidadãs de algum
Estado soberano." (8)
Com
efeito, pessoas dotadas de "direitos humanos", mas nada além disso —
sem outros direitos, mais defensáveis porque institucionalmente
enraizados, para conter e manter no lugar os direitos "humanos" —, não
podiam ser encontradas em lugar algum e eram, para todos os fins
práticos, inimagináveis. Obviamente, era necessária uma puissance,
potenza, might ou Macht (9) essencialmente social para
endossar a humanidade dos seres humanos. E por toda a era moderna essa
"potência" veio a
ser,
invariavelmente, aquela que traçou a fronteira entre humano e inumano,
disfarçada, nos tempos modernos, na que divide cidadãos
e estrangeiros. Nesta terra fatiada em Estados soberanos, os sem-teto
são também sem-direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a
lei, mas porque não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam
se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer,
em seus protestos contra a rigorosa condição a que foram submetidos.
Em
seu ensaio sobre Karl Jaspers, escrito alguns anos depois de As origens
do totalitarismo, Hannah Arendt observava que, embora
para todas as gerações precedentes a "humanidade" tivesse sido apenas
um conceito ou ideal (podemos acrescentar: um postulado filosófico, um
sonho de humanistas, por vezes um grito de guerra, mas dificilmente um
princípio organizador da ação política), ela
havia "se tornado algo dotado de uma realidade urgente" (10).
Transformara-se em um assunto de extrema urgência porque o impacto do
Ocidente tinha não apenas saturado o restante do mundo com os produtos
de seu desenvolvimento tecnológico, mas também exportado
"seus processos de desintegração" — entre eles a ruptura das crenças
religiosas e metafísicas. Os avanços espantosos das ciências naturais e a
ascensão do Estado-nação como praticamente a única forma de governo
apresentada de modo mais proeminente. Forças
que tinham precisado de séculos para "minar as antigas crenças e formas
de vida política" no Ocidente "levaram apenas algumas décadas para
derrubá-las... em todas as outras partes do mundo".
Esse
tipo de unificação, assinala Arendt, não poderia senão produzir um tipo
"inteiramente negativo" de "solidariedade do gênero
humano". Cada parte da população humana sobre a terra é tornada
vulnerável por todas as outras e cada uma delas. Trata-se, podemos
dizer, de uma "solidariedade" de perigos, riscos e temores. Na maior
parte do tempo e para a maioria das pessoas, a "unidade
do planeta" se resume ao horror diante de ameaças geradas ou incubadas
em lugares distantes num mundo "em ampliação, mas fora do alcance".
Trecho acima: páginas 68 a 70 de Amor Líquido - Zygmunt Bauman
A Terra como uma Única Comunidade
De
longe, a Terra, vista como os astronautas a viram quando estiveram na
Lua, não passa de um ponto azul, no horizonte, onde não se enxergam
fronteiras, divisões, e,
muito menos, conflitos, guerras e violência. Do silêncio do espaço
sideral, o que vemos são beleza e equilíbrio dinâmico.
A
noção de cidadania planetária sustenta-se nessa visão unificadora do
planeta. Trata-se de um anseio ancestral: a criação de uma comunidade de
iguais, pacífica, produtiva,
sustentável e socialmente justa. Cidadania planetária é uma expressão
adotada para designar um conjunto de princípios, valores, atitudes e
comportamentos fundados numa nova percepção da Terra. Ampliamos o nosso
ponto de vista: de uma visão antropocêntrica
para uma consciência planetária e para uma nova referência ética e
social, a civilização planetária.
Na
base da proposta de “educar para a cidadania planetária”, está o
paradigma Terra, isto é, a concepção de uma comunidade humana una e
diversa. Está o desafio de realizar
uma profunda revisão dos nossos currículos e dos processos educativos.
Exige a compreensão de que o contexto local está mais complexo porque
nele, cada vez mais, está presente o global. Agir sobre este implica
considerar as interferências daquele. A comunidade
é, ao mesmo tempo, local e global. Precisamos de uma reorientação de
nossa visão de mundo, do sentido de nossa existência, da forma como
compreendemos a vida: a nossa, as outras formas de vida e a do próprio
planeta Terra.
O
conceito de cidadania planetária tem a ver com a consciência, cada vez
mais necessária, de que temos uma identidade terrena, somos terráqueos,
temos um destino comum
como seres humanos. E não só: somos seres que fazemos parte de outro
ser, a Terra, que é também um ser vivo e em evolução, que nos acolhe e
nos mantém vivos e se mantém vivo. Somos Terra.
A
esse sonho possível de uma única comunidade humana, chamamos de
“planetarização”. Ela se opõe radicalmente à globalização que exclui,
segrega, degrada, divide o mundo
em globalizados e não globalizados; ela promove a guerra e coloca em
risco a sobrevivência do próprio planeta e de nossa espécie.
No
processo de construção da planetarização, a educação joga um papel
fundamental. Por meio dela, formamos seres humanos capazes de perceber a
interdependência, seja
entre nós, terráqueos, seja entre todas as formas de vida; estejam elas
na água, no ar ou na terra; estejam elas próximas ou distante de nós,
visíveis ou imperceptíveis.
A
educação germina sonhos, constrói desejos, sentido e esperança. Por
meio dela somos capazes de construir, no local e no global, a comunidade
de iguais, promotora
da cultura da paz, da justiça social e da sustentabilidade. Não estamos
falando de qualquer educação. Falamos daquela que caminha na direção de
um “outro mundo possível”. Ela é imprescindível. Sem ela, o sonho
da transformação social, do respeito à Gaia, à vida, não se realiza.
Esse é um processo que deve dar-se ao longo da vida e começa desde a
infância.
A
Prefeitura Municipal de Osasco, através de sua Secretaria de Educação,
cujas políticas públicas se inserem no movimento de construção dessa
outra globalização, ousou
implementar um programa que tem essa visão planetária, enraizada no
nível local, em conexão com o global, atualizando o lema “pensar
globalmente, agir localmente” para “pensar e agir, local e globalmente”.
Uma educação para a cidadania planetária é também
uma educação cidadã, que forma para a participação, a autonomia, a
democracia.
O Programa
Educação para a Cidadania Planetária está colocando a política
pública em favor de uma educação que promove, nas comunidades e nas
escolas, a necessária e urgente compreensão da nossa interdependência,
da nossa identidade terrena, do nosso compromisso
e intervenção em nível local, mas também no global. Os graves desafios
ambientais da Terra não têm fronteiras. Por isso, educar para a
cidadania planetária é também educar para a sustentabilidade. A política
educacional de Osasco está buscando garantir o direito
de aprender, oferecendo qualidade sociocultural e socioambiental da
educação.
A
educação integral, outra dimensão fundamental à educação para a
cidadania planetária, supera o currículo linear da educação bancária,
denunciada por Paulo Freire
há mais de 50 anos, que se abre para a vivência de experiências
inovadoras e para aprendizagens verdadeiramente significativas para
todos os sujeitos. Vista desta forma, a educação evita a fragmentação do
conhecimento e possibilita uma visão de totalidade,
crucial ao contexto em que vivemos.
Estamos
às vésperas da realização da Rio+20 que está gerando enormes
expectativas inclusive no campo da educação. É um momento propício para
relembrar o lema do
Fórum Global da Rio-92: “A terra é uma só nação, e os seres humanos, os seus cidadãos”,
que tem tudo a ver com os objetivos do Programa Educação para a Cidadania Planetária
de Osasco. A cidadania planetária é uma ideia força poderosa que
pode transformar nossos currículos escolares. Uma cultura de paz e de
sustentabilidade é possível e necessária em nossas escolas, cada vez
mais pressionadas por um entorno violento e insustentável.
O
que Osasco está fazendo em matéria de educação nos ajuda a desenvolver
uma relação mais saudável com o planeta e a ter um vínculo mais amoroso
com a Terra. O Programa
Educação para a Cidadania Planetária de Osasco nos convida a viver uma
vida mais sustentável.
Emidio de Souza
Prefeito de Osasco
Moacir Gadotti
Diretor do Instituto Paulo Freire
Trecho acima extraído do capítulo:
Novos tempos da educação em Osasco
Emidio de Souza e Moacir Gadotti
Livro (Educacao_para_a_Cidadania_ Planetaria.pdf) disponível em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário