sábado, 29 de dezembro de 2012

Kant: vivemos na superfície de uma esfera => A unidade da humanidade é o derradeiro horizonte de nossa história universal - é o destino que a Natureza nos reservou /// Educação para a Cidadania Planetária

O conceito de cidadania planetária tem a ver com a consciência, cada vez mais necessária, de que temos uma identidade terrena, somos terráqueos, temos um destino comum como seres humanos. E não só: somos seres que fazemos parte de outro ser, a Terra, que é também um ser vivo e em evolução, que nos acolhe e nos mantém vivos e se mantém vivo. Somos Terra.
 
A esse sonho possível de uma única comunidade humana, chamamos de “planetarização”. Ela se opõe radicalmente à globalização que exclui, segrega, degrada, divide o mundo em globalizados e não globalizados; ela promove a guerra e coloca em risco a sobrevivência do próprio planeta e de nossa espécie.
 
No processo de construção da planetarização, a educação joga um papel fundamental. Por meio dela, formamos seres humanos capazes de perceber a interdependência, seja entre nós, terráqueos, seja entre todas as formas de vida; estejam elas na água, no ar ou na terra; estejam elas próximas ou distante de nós, visíveis ou imperceptíveis.
 
(...) Estamos às vésperas da realização da Rio+20 que está gerando enormes expectativas inclusive no campo da educação. É um momento propício para relembrar o lema do Fórum Global da Rio-92: “A terra é uma só nação, e os seres humanos, os seus cidadãos”, que tem tudo a ver com os objetivos do Programa Educação para a Cidadania Planetária de Osasco. A cidadania planetária é uma ideia força poderosa que pode transformar nossos currículos escolares. Uma cultura de paz e de sustentabilidade é possível e necessária em nossas escolas, cada vez mais pressionadas por um entorno violento e insustentável.
 
(...) A globalização2, impulsionada pela tecnologia, parece determinar cada vez mais nossas vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia a dia, por serem tomadas muito distante de nós, parecem nos escapar, comprometendo nosso papel de sujeitos na história. Tentam nos convencer de que não há o que fazer, a não ser aceitar as consequências do mundo globalizado. Alguns de seus efeitos mais imediatos são: o desemprego, as crises cíclicas, o aprofundamento das diferenças entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco, a perda de poder e de autonomia de muitos Estados e nações. Mas não é bem assim. Esse é um tipo de globalização, o “globalista” (IANNI, 1996) ao qual estamos submetidos hoje: a globalização capitalista.
 
Dentro deste complexo fenômeno, podemos distinguir também a globalização econômica, realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania. Ambas se utilizam da mesma base tecnológica, mas com lógicas opostas. A primeira, submetendo Estados e nações,  é comandada pelo interesse capitalista; a segunda globalização – a outra globalização, como é chamada por Milton Santos (2000) –, é a realizada através das organizações da sociedade civil global. Essas organizações se reuniram pela primeira vez, no Rio de Janeiro, em 1992, no Fórum Global ECO 92, um evento dos mais significativos do final de século 20, dando um grande impulso à globalização da cidadania. Foi o Fórum Global ECO 92 que gerou importantes documentos “planetários”, como a Carta da Terra e o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global. Hoje temos ainda a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014) que está se constituindo num fator importante de construção de uma cidadania planetária, um dos grandes motes da ECO 92.

2 O termo globalização tornou-se a denominação mais satisfatória do período histórico pós-Guerra Fria (FALK, 1999). Este período caracteriza-se por processos econômicos, políticos e culturais de escala mundial e transnacional, onde os meios de comunicação e suas tecnologias permitem acelerar a circulação de informações e fluxos financeiros. Mais do que em qualquer outro aspecto, é no econômico que o fenômeno da globalização tem sua origem e principal objetivo, pautando sua atuação em investimentos financeiros e expansão do modo de vida capitalista. Modo de vida, pois é nele que se encontra a mais importante consequência da globalização: a construção de um sistema cultural homogeneizante. Conforme Wagner Ribeiro, “há quem afirme que estamos diante de um ‘cidadão global’, que está inserido no universo do consumo, o que destoa completamente da ideia de cidadania” (RIBEIRO, 1995, p. 18-21). Em oposição a essa homogeneização, Milton Santos concebe que "cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente". (SANTOS, 2002, p. 339).
 
 
Mais de dois séculos atrás, em 1784, Kant observou que nosso planeta é uma esfera, e extraiu consequências desse fato reconhecidamente banal: como permanecemos na superfície dessa esfera e nela nos movemos, não temos outro lugar para ir e, portanto estamos destinados a viver para sempre na vizinhança e companhia de outros. A longo prazo, manter a distância, que dirá ampliá-la, está fora de questão: nosso movimento em torno da superfície esférica acabará reduzindo a distância que pretendíamos alargar. E assim die volkommende bürgeliche Vereinigung in der Menschengattung (a perfeita unificação da espécie humana por meio de uma cidadania comum) é o destino que a Natureza nos reservou ao nos colocar na superfície de um planeta esférico. A unidade da humanidade é o derradeiro horizonte de nossa história universal. Um horizonte que nós, seres humanos, estimulados e guiados pela razão e pelo instinto de autopreservação, estamos destinados a perseguir e, na plenitude do tempo, alcançar. Mais cedo ou mais tarde, advertiu Kant, não haverá uma única nesga de espaço vazio onde possam procurar abrigo ou resgate os que considerem os espaços já ocupados muito apinhados, inóspitos, inconvenientes ou inadequados. E assim a Natureza nos obriga à visão da hospitalidade (recíproca) como o preceito supremo que precisamos — e acabaremos sendo forçados a — abraçar e obedecer para pôr fim à longa cadeia de tentativas e erros, às catástrofes causadas por esses erros e às devastações que elas deixam em sua esteira.

Os leitores de Kant puderam aprender tudo isso em seu livro dois séculos atrás. O mundo, contudo, mal prestou atenção. Parece que, em vez de escutar atentamente seus filósofos, sem falar em seguir suas advertências, prefere homenageá-los com placas. Os filósofos podem ter sido os principais heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a tragédia épica pós-iluminista quase apagou suas falas. Preocupado em arranjar o casamento das nações com os Estados, dos Estados com a soberania e desta com territórios cercados por fronteiras estritamente fechadas e diligentemente controladas, o mundo parecia perseguir um horizonte bem diferente daquele traçado por Kant. Durante 200 anos, o mundo se ocupou em fazer do controle dos movimentos dos seres humanos uma prerrogativa exclusiva dos poderes estatais, em erigir barreiras àqueles que não era possível controlar e em lotá-las de guardas atentos e fortemente armados. Passaportes, vistos de entrada e saída, alfândegas e controles de imigração foram invenções originais da moderna arte de governar.

O advento do Estado moderno coincidiu com a emergência das "pessoas sem Estado", os sans papiers, e da idéia de unwertes Leben, a reencarnação mais recente (5) da antiga instituição do homo sacer. Derradeira personificação do direito soberano de descartar e excluir qualquer ser humano que tenha sido lançado além dos limites das leis humanas e divinas, e de transformá-lo num ser a que as leis não se aplicam e cuja destruição não acarreta punições, despida que é de qualquer significado ético ou religioso.

A derradeira sanção do poder soberano moderno resultou no direito de exclusão da humanidade.
Poucos anos depois de Kant ter publicado suas conclusões, surgiu outro documento, mais curto, que teria, nos dois séculos de história seguintes, bem como nas mentes de seus principais atores, um peso muito maior que o livrinho do filósofo. Era a Déclaration des Droits de L'Homme e du Citoyen, em relação à qual Giorgio Agamben observaria, com o benefício de uma perspectiva de 200 anos, não estar claro se "os dois termos [homem e cidadão] deveriam identificar duas realidades distintas" ou se, em vez disso, o primeiro deles sempre quis dizer "já contido no segundo" (6) - ou seja, o portador dos direitos era o homem que também fosse (ou na medida em que fosse) um cidadão.

Essa falta de clareza, com todas as suas conseqüências repulsivas, fora observada antes por Hannah Arendt num mundo que rapidamente se enchia de "pessoas deslocadas". Ela relembrou a antiga premonição de Edmund Burke, genuinamente profética, de que o maior perigo para a humanidade era a abstrata nudez de "não ser nada além de humana" (7). "Os direitos humanos", como Burke observou, eram uma abstração, e os seres humanos não poderiam esperar que eles garantissem muita proteção, a menos que essa abstração fosse preenchida com a substância em que consistiam os direitos dos ingleses ou franceses. "O mundo nada descobriu de sagrado na abstrata nudez do ser humano", como Arendt resumiu a experiência dos anos que se seguiram às observações de Burke. "Os direitos do homem, supostamente inalienáveis, mostraram-se inaplicáveis ... onde quer que tenham aparecido pessoas que não eram mais cidadãs de algum Estado soberano." (8)

Com efeito, pessoas dotadas de "direitos humanos", mas nada além disso — sem outros direitos, mais defensáveis porque institucionalmente enraizados, para conter e manter no lugar os direitos "humanos" —, não podiam ser encontradas em lugar algum e eram, para todos os fins práticos, inimagináveis. Obviamente, era necessária uma puissance, potenza, might ou Macht (9) essencialmente social para endossar a humanidade dos seres humanos. E por toda a era moderna essa "potência" veio a
ser, invariavelmente, aquela que traçou a fronteira entre humano e inumano, disfarçada, nos tempos modernos, na que divide cidadãos e estrangeiros. Nesta terra fatiada em Estados soberanos, os sem-teto são também sem-direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer, em seus protestos contra a rigorosa condição a que foram submetidos.

Em seu ensaio sobre Karl Jaspers, escrito alguns anos depois de As origens do totalitarismo, Hannah Arendt observava que, embora para todas as gerações precedentes a "humanidade" tivesse sido apenas um conceito ou ideal (podemos acrescentar: um postulado filosófico, um sonho de humanistas, por vezes um grito de guerra, mas dificilmente um princípio organizador da ação política), ela havia "se tornado algo dotado de uma realidade urgente" (10). Transformara-se em um assunto de extrema urgência porque o impacto do Ocidente tinha não apenas saturado o restante do mundo com os produtos de seu desenvolvimento tecnológico, mas também exportado "seus processos de desintegração" — entre eles a ruptura das crenças religiosas e metafísicas. Os avanços espantosos das ciências naturais e a ascensão do Estado-nação como praticamente a única forma de governo apresentada de modo mais proeminente. Forças que tinham precisado de séculos para "minar as antigas crenças e formas de vida política" no Ocidente "levaram apenas algumas décadas para derrubá-las... em todas as outras partes do mundo".

Esse tipo de unificação, assinala Arendt, não poderia senão produzir um tipo "inteiramente negativo" de "solidariedade do gênero humano". Cada parte da população humana sobre a terra é tornada vulnerável por todas as outras e cada uma delas. Trata-se, podemos dizer, de uma "solidariedade" de perigos, riscos e temores. Na maior parte do tempo e para a maioria das pessoas, a "unidade do planeta" se resume ao horror diante de ameaças geradas ou incubadas em lugares distantes num mundo "em ampliação, mas fora do alcance".

Trecho acima: páginas 68 a 70 de Amor Líquido - Zygmunt  Bauman 

A Terra como uma Única Comunidade

De longe, a Terra, vista como os astronautas a viram quando estiveram na Lua, não passa de um ponto azul, no horizonte, onde não se enxergam fronteiras, divisões, e, muito menos, conflitos, guerras e violência. Do silêncio do espaço sideral, o que vemos são beleza e equilíbrio dinâmico.
 
A noção de cidadania planetária sustenta-se nessa visão unificadora do planeta. Trata-se de um anseio ancestral: a criação de uma comunidade de iguais, pacífica, produtiva, sustentável e socialmente justa. Cidadania planetária é uma expressão adotada para designar um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos fundados numa nova percepção da Terra. Ampliamos o nosso ponto de vista: de uma visão antropocêntrica para uma consciência planetária e para uma nova referência ética e social, a civilização planetária.
 
Na base da proposta de “educar para a cidadania planetária”, está o paradigma Terra, isto é, a concepção de uma comunidade humana una e diversa. Está o desafio de realizar uma profunda revisão dos nossos currículos e dos processos educativos. Exige a compreensão de que o contexto local está mais complexo porque nele, cada vez mais, está presente o global. Agir sobre este implica considerar as interferências daquele. A comunidade é, ao mesmo tempo, local e global. Precisamos de uma reorientação de nossa visão de mundo, do sentido de nossa existência, da forma como compreendemos a vida: a nossa, as outras formas de vida e a do próprio planeta Terra.
 
O conceito de cidadania planetária tem a ver com a consciência, cada vez mais necessária, de que temos uma identidade terrena, somos terráqueos, temos um destino comum como seres humanos. E não só: somos seres que fazemos parte de outro ser, a Terra, que é também um ser vivo e em evolução, que nos acolhe e nos mantém vivos e se mantém vivo. Somos Terra.
 
A esse sonho possível de uma única comunidade humana, chamamos de “planetarização”. Ela se opõe radicalmente à globalização que exclui, segrega, degrada, divide o mundo em globalizados e não globalizados; ela promove a guerra e coloca em risco a sobrevivência do próprio planeta e de nossa espécie.
 
No processo de construção da planetarização, a educação joga um papel fundamental. Por meio dela, formamos seres humanos capazes de perceber a interdependência, seja entre nós, terráqueos, seja entre todas as formas de vida; estejam elas na água, no ar ou na terra; estejam elas próximas ou distante de nós, visíveis ou imperceptíveis.
 
A educação germina sonhos, constrói desejos, sentido e esperança. Por meio dela somos capazes de construir, no local e no global, a comunidade de iguais, promotora da cultura da paz, da justiça social e da sustentabilidade. Não estamos falando de qualquer educação. Falamos daquela que caminha na direção de um “outro mundo possível”. Ela é imprescindível. Sem ela, o sonho da transformação social, do respeito à Gaia, à vida, não se realiza. Esse é um processo que deve dar-se ao longo da vida e começa desde a infância.
 
A Prefeitura Municipal de Osasco, através de sua Secretaria de Educação, cujas políticas públicas se inserem no movimento de construção dessa outra globalização, ousou implementar um programa que tem essa visão planetária, enraizada no nível local, em conexão com o global, atualizando o lema “pensar globalmente, agir localmente” para “pensar e agir, local e globalmente”. Uma educação para a cidadania planetária é também uma educação cidadã, que forma para a participação, a autonomia, a democracia.
 
O Programa Educação para a Cidadania Planetária está colocando a política pública em favor de uma educação que promove, nas comunidades e nas escolas, a necessária e urgente compreensão da nossa interdependência, da nossa identidade terrena, do nosso compromisso e intervenção em nível local, mas também no global. Os graves desafios ambientais da Terra não têm fronteiras. Por isso, educar para a cidadania planetária é também educar para a sustentabilidade. A política educacional de Osasco está buscando garantir o direito de aprender, oferecendo qualidade sociocultural e socioambiental da educação.
 
A educação integral, outra dimensão fundamental à educação para a cidadania planetária, supera o currículo linear da educação bancária, denunciada por Paulo Freire há mais de 50 anos, que se abre para a vivência de experiências inovadoras e para aprendizagens verdadeiramente significativas para todos os sujeitos. Vista desta forma, a educação evita a fragmentação do conhecimento e possibilita uma visão de totalidade, crucial ao contexto em que vivemos.
 
Estamos às vésperas da realização da Rio+20 que está gerando enormes expectativas inclusive no campo da educação. É um momento propício para relembrar o lema do Fórum Global da Rio-92: “A terra é uma só nação, e os seres humanos, os seus cidadãos”, que tem tudo a ver com os objetivos do Programa Educação para a Cidadania Planetária de Osasco. A cidadania planetária é uma ideia força poderosa que pode transformar nossos currículos escolares. Uma cultura de paz e de sustentabilidade é possível e necessária em nossas escolas, cada vez mais pressionadas por um entorno violento e insustentável.
 
O que Osasco está fazendo em matéria de educação nos ajuda a desenvolver uma relação mais saudável com o planeta e a ter um vínculo mais amoroso com a Terra. O Programa Educação para a Cidadania Planetária de Osasco nos convida a viver uma vida mais sustentável.
 
Emidio de Souza
Prefeito de Osasco
 
Moacir Gadotti
Diretor do Instituto Paulo Freire

Trecho acima extraído do capítulo:

Novos tempos da educação em Osasco
Emidio de Souza e Moacir Gadotti

Livro (Educacao_para_a_Cidadania_Planetaria.pdf) disponível em:

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