O que é que distinguimos ao falar de cultura então? Os seres humanos surgem na história da família de primatas bípedes à qual pertencem, quando o ‘linguagear’ como uma maneira de conviver em coordenações de coordenações de condutas consensuais, deixou de ser um fenômeno ocasional, e ao se conservar geração após geração em um grupo deles, tornou-se parte central da maneira de viver que definiu dali em diante nossa linhagem. Aquilo que conotamos na vida cotidiana, quando falamos de cultura ou de assuntos culturais, é uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de conviver humano como uma rede de coordenações de emoções e ações que se realiza como uma configuração particular de entrelaçamento do agir e o emocionar da gente que vive essa cultura.
Como tal, uma cultura é constitutivamente um sistema conservador fechado, que gera seus membros na medida em que estes a realizam através de sua participação nas conversações que a constituem e definem. Deduz-se disto também, que nenhuma ação particular e que nenhuma emoção particular define uma cultura porque uma cultura como rede de conversações é uma configuração de coordenações de ações e emoções.
Do anterior se deduz que diferentes culturas são distintas redes fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras distintas de viver humano como distintas configurações de entrelaçamento do ‘linguagear’ e do emocionar. Também se deduz que uma mudança cultural é uma mudança na configuração do agir e do emocionar dos membros de uma cultura, e que como tal tem lugar como uma mudança na rede fechada de conversações que originalmente definia a cultura que muda.
Os extremos de uma cultura, como maneira de viver, são operacionais e surgem com o estabelecimento desta. Ao mesmo tempo, o pertencer a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam. E qualquer ser humano pode pertencer a diferentes culturas em diferentes momentos de seu viver, segundo as conversações nas quais participe, ele, ou ela, nesses distintos momentos.
Com isto em mente podemos ver que o que se chama sustentabilidade consiste em uma rede fechada de conversações que traz à mão recursivamente a viabilização, geração, realização e conservação das condições de possibilidade para a conservação do bem-estar da‘antroposfera’ e da biosfera. Isto é, em último termo, a sustentabilidade é uma cultura, cuja orientação fundamental se encontra na geração de processos que permitem possibilitar a conservação de uma Matriz Biológico-Cultural da Existência Humana cursando no bem-estar, e, portanto de uma Matriz Biológica da existência dos seres vivos que também se conserva cursando no bem-estar.
Deve-se ressaltar aqui que a noção de bem-estar não é um principio explicativo nem uma definição arbitrária, mas sim uma abstração de um aspecto fundamental do viver dos seres vivos em geral. Enquanto o que define o curso que segue a deriva evolutiva de uma linhagem está dado pelas preferências e gostos dos organismos (+), o curso que segue o devir evolutivo surge momento a momento definido pela conservação do bem-estar dos indivíduos que o realizam. Ou o que é igual; o que guia o curso que segue o devir evolutivo de uma linhagem é o curso da conservação do viver dos organismos em congruência dinâmica com o meio.
Mas no discurso evolutivo tradicional que fala da adaptação ao meio como uma conquista que se torna possível ao seguir o caminho competitivo das vantagens adaptativas fica de fora toda a compreensão do fenômeno do bem-estar do viver, e é tachado como algo subjetivo. Mas a partir do que nos mostra a compreensão da "deriva natural", vemos que os seres vivos deslizam no viver e conviver na conservação do acoplamento estrutural na conservação do viver. Isto é, na conservação do bem-estar natural, onde o bem-estar ocorre momento a momento, na conservação do viver, que é o bem-estar natural desse momento e que se não ocorrer o organismo morre.
Entender que a sustentabilidade é uma rede fechada de conversações nos permite nos conscientizar que a responsabilidade fundamental pela mesma está em nossas mãos, a biosfera não fará nada pela sustentabilidade.
E a sustentabilidade é uma rede fechada de conversações porque não é meramente uma conversação, mas um entrelaçamento dinâmico de múltiplas conversações e ainda de redes fechadas de conversações nos múltiplos âmbitos em que de fato existe a presença da preocupação (ou ocupação) ética pela sustentabilidade, tanto no espaço ambiental, como no econômico, empresarial, governamental, inter estatal, etc.
Pois bem, ao falar de ética, de novo, não estamos nos referindo a uma definição ou a um princípio filosófico, estamos mostrando uma dinâmica relacional humana que todos podemos constatar no viver cotidiano ao abstrair as situações nas quais falamos de condutas éticas.
Um observador diz que uma pessoa tem conduta ética quando vê que ele ou ela se conduz, escolhendo suas atividades, de modo a não danificar outro ou outros em seu âmbito social e ecológico. Porque essa pessoa se importa com o que pode acontecer aos outros em função do que ele ou ela deixa de fazer, simplesmente porque se importa com esse outro ou outra. Quer dizer, não vive cuidando da relação com os outros através do respeito de normas e sim porque se importa com as pessoas.
Neste sentido cabe distinguir entre ética e moral.
A ética tem um fundamento biológico, dada nossa história evolutiva humana - de seres sociais. Nós nos importamos e nos comovemos, espontaneamente, com o que acontece com os outros. Na ética me importo com as pessoas através do que me importam as pessoas, sem justificativas racionais, em troca na moral o que nos importa são as normas, e, portanto o fundamento da moral é cultural e há tantas morais diferentes como critérios culturais, em compensação ética há uma só.
É assim como podemos nos conduzir de um modo ético, mas imoral, como quando Jesus salva a prostituta de morrer apedrejada. Pois a moral judia da época demandava este castigo pelo seu critério de validade. Ou podemos nos conduzir de um modo moral, mas não ético, como acontece cada vez que uma empresa joga certa quantidade de resíduos tóxicos no ambiente sabendo que causa um dano ecológico, mas que por lei está permitido. E também obviamente pode-se ser ético e moral, e imoral e não ético.
Pois bem, isto não é um relativizar a ética, mas mostrar a dinâmica que a constitui, se tratamos de construir justificativas para nosso operar ético, estaremos nos conduzindo moralmente, e a ética não requer justificativas justamente porque é uma consciência, um sentir, cada um sabe quando age através do desejo de acolher o outro, outra ou o outro, e quando não.
O que tenha adquirido importância: o desejo consensual por gerar sustentabilidade para o mundo humano e o mundo natural, tem a ver com que estamos nos conscientizando do dano que estivemos gerando tanto à biosfera como à ‘antroposfera’. E que em última instância este dano sempre nos envolve, os indivíduos e as distintas comunidades que formamos, dada a natureza ‘sistêmica sistêmica’dos processos biológico-culturais.
De fato hoje em dia nos encontramos em uma encruzilhada entre duas eras, estamos às portas da possibilidade de uma nova mudança cultural onde a preocupação ética com as pessoas, comunidades e biosfera inteira, é o ponto cardeal em torno do qual todo o outro pode mudar se é que temos o desejo e a consciência adequada. Mas antes de ver isto, vejamos alguns aspectos fundamentais do humano, o social e o educar.
Trecho extraído das páginas 6 a 9 (formato Microsoft Word) do texto disponível em:
Sustentabilidade ou harmonia biológico-cultural dos processos?
Todo substantivo oculta um verbo.
Ximena Davila, Humberto Maturana, Ignacio Muñoz & Patricio García
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