sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sustentabilidade ou harmonia biológico-cultural dos processos?



Sustentabilidade ou harmonia biológico-cultural dos processos?

Todo substantivo oculta um verbo.

Ximena Davila, Humberto Maturana, Ignacio Muñoz & Patricio García

http://www.globalforum.com.br/uploadAddress/Comentario%20Reflexivo%20Libro%20Proposiciones%20Provocativas_port[60634].pdf


[Feita revisão do texto para facilitar leitura: quebra de frases longas, alterações de posição de verbos... Se houver percepção de mudança de significado, em função destas alterações, agradeço comentários - Claudio]

Introdução

Atualmente habitamos no âmbito mundial em uma cultura cujo substrato epistemológico está fundado no ser em si de tudo o que existe. Na pergunta pelo ser das coisas e pelas entidades, resultando em uma epistemologia basicamente dualista. Que em todos os âmbitos separa o que observa do observado e não considera as regularidades biológico-culturais dos processos de distinção que os mundos que nos aparecem trazem à mão, vivendo-os então como existindo independentes de nosso operar no observar, pois este é sempre um operar inconsciente.

É um fundo epistemológico o da pergunta pelo ser, que gera olhares de onde não se vêem as dinâmicas que constituem os sistemas, mas que atende linearmente a supostas causas e efeitos, onde não se vêem matrizes e sim objetos. Uma das características próprias desta epistemologia de fundo é que dela são gerados princípios explicativos e definições que enquanto substantivos sempre ocultam as dinâmicas que trazem à mão os fenômenos que se busca explicar. Isto é, os verbos se ‘coisificam’ ao pretender descrever e explicar as experiências que como observadores temos ao não atender à própria operação com que trazemos à mão o observado na operação de distinção que o constitui.

Nesta reflexão exploraremos a multidimensional dinâmica, que fica oculta, quando falamos da sustentabilidade. E veremos que tal dinâmica que é de fato a que constitui os processos que a ‘posteriori‘ chamamos sustentáveis, é, como veremos, uma dinâmica biológico-cultural.

A biologia-cultural não é uma teoria, mas é a dinâmica operacional geradora do nicho ou matriz relacional onde se dá a existência humana. Assim, a noção Matriz Biológico-Cultural da Existência Humana conota o entrelaçamento biológico cultural do viver humano em redes de conversações.

As redes de conversações que constituem o viver cultural humano modularam e modulam o curso do fluir biológico do viver humano, e o fluir biológico da realização do viver do ser humano modulou e modula o curso do viver cultural do humano. Tudo isto em um entrelaçamento recursivo [1] que surge com a linhagem humana na conservação trans geracional do conversar ao surgir este na família ancestral nas próprias origens do viver humano.

A biologia-cultural é o âmbito relacional-operacional no que ocorre este processo na história evolutiva de nossa linhagem. A biologia-cultural é, então, o peculiar da linhagem humana e é nela onde todo o humano ocorre. Tudo o que os seres humanos vivem é vivido através da biologia-cultural, seja arte, ciência, tecnologia, religião, filosofia, esporte, lazer ou simplesmente o viver as atividades próprias da conservação do viver. Deste modo, o fluir do viver humano na biologia-cultural é o que constitui o viver humano na linguagem e no conversar como um viver gerador de mundos que surgem como expansões das matrizes operacionais e relacionais do viver humano cotidiano fundamental.

O ponto central do viver biológico é a dinâmica de conservação e transformação dos processos arquitetônicos mutantes que constituem instante a instante a realização do viver de um organismo.

E o ponto central do viver cultural é a dinâmica de conservação de modos de sentir, pensar, fazer explicar e refletir que como redes fechadas ou abertas de conversações recursivas, configuram os sentires, pensares, fazeres e explicares que são aceitos como fundamentos válidos conscientes ou inconscientes que constitui, de maneira espontânea, o fluir do presente mutante contínuo do viver cotidiano.

O viver humano enquanto um conviver cultural em redes de conversações inicia um devir que dá origem aos diferentes modos de viver e conviver que constituem os diferentes mundos biológico-culturais que vivemos como diferentes realidades ou matrizes biológico-culturais do viver.

A dinâmica biológico-cultural da sustentabilidade Hoje em dia ganhou importância mundialmente a noção de sustentabilidade e as reflexões e ações ao respeito, tanto no âmbito empresarial como no governamental, inter estatal e cidadão, e onde a atual compreensão do que se entende por sustentabilidade vai além de simplesmente o ambiental. Fala-se de “o desafio” da sustentabilidade, ao qual lhe são reconhecidas dimensões econômicas, sociais, culturais, político-institucionais, físico-territoriais e científico-tecnológicas.

Empregam-se grandes quantidades de recursos econômicos e humanos para gerar instâncias que permitam implementar e difundir práticas que resultem na geração de diversas dimensões de sustentabilidade, dentre as quais as instâncias para gerar uma sociedade global ou mundial sustentável nos parecem a de mais longo estímulo e profundidade.

Mas como surge a sustentabilidade? Qual é a dinâmica multidimensional que uma sociedade global traz à mão um observador distingue como sustentável?

Em um olhar biológico-cultural para a biologia descobrimos que o ser vivo surge em uma matriz de existência que o contém e o torna possível, o que implica que para a conservação do viver dos seres vivos a relação de congruência entre o organismo e o meio é uma constante, não uma variável [2]. Se não se conserva o acoplamento estrutural entre organismo e meio o organismo morre. Isto é, se não são dadas as condições de possibilidade para que o ser vivo gere, realize e conserve seu nicho no meio, se o meio não for estruturalmente acolhedor, o viver do ser vivo será impossível.

Pois bem, todos os seres vivos, absolutamente todos, transformam o entorno do meio que os acolhe, e vice-versa, em uma relação de mútuo engatilhamento de transformações estruturais recíprocas. E no caso dos insetos e animais sociais os outros organismos da mesma classe passam a fazer parte do meio em que realizam sua existência. Assim ocorre no caso de nós, os seres humanos, e quando falarmos de ‘antroposfera’ justamente estaremos assinalando este âmbito de relações onde as comunidades humanas são parte fundamental do meio em que os humanos existem e onde de fato se humanizam na convivência.

A palavra ‘antroposfera’ faz referência ao âmbito relacional que surge como uma dinâmica ecológica particular com o viver humano, E como tal é parte integral da biosfera. Os seres humanos como seres vivos existem na biosfera, e como seres humanos em tudo o que fazemos (empresas, organizações, filosofias, políticas, etc.) existimos na ‘antroposfera’. Isto é, em um sentido estrito biosfera e ‘antroposfera’ só são separáveis na distinção, mas não na dinâmica do fluxo dos processos sistêmicos sistêmicos [3] que as constituem, e, como veremos, a referência ao biológico-cultural, busca evocar essa unidade inseparável ao falar dos processos naturais e humanos.

O fato de os seres vivos transformarem o meio em que se encontram e que torna possível sua existência é parte das coerências próprias do fluir do viver dos sistemas ecológicos, como também são as extinções massivas. A mudança é outra constante no fluir dos processos ecológicos da biosfera, de fato o fluir do viver dos seres vivos ocorre em uma contínua deriva de mudanças estruturais. O viver de um organismo ocorre como um contínuo fluir de mudança estrutural no que se conservam ao mesmo tempo sua organização (‘autopoiese ‘) e sua adaptação ao seu âmbito de interações.

E chamamos de maneira sintética o processo espontâneo de deriva estrutural natural que ocorre com o devir de todo sistema, deriva natural quando se refere ao devir histórico dos seres vivos. A conseqüência fundamental da deriva natural é que vive o ser vivo que vive através de sua realização em um meio em conservação contínua de sua relação de acoplamento estrutural, com ele: se isto não acontece o ser vivo morre. Na deriva natural sobrevive o apto em um devir não comparativo.

Mas deve-se compreender que a mudança não ocorre no vazio, como diz a lei sistêmica da mudança e da conservação: “Cada vez que em um conjunto de elementos começam a serem conservadas certas relações, abre-se espaço para que tudo mude em torno das relações que se conservam” [4]. Quer dizer que tudo muda em torno de algo que se conserva. E, no caso da mudança estrutural dos seres vivos, ao longo da história evolutiva e ao longo da ontogenia ou história de transformações no curso do viver de um organismo, o que muda em torno da conservação de duas dinâmicas entrelaçadas: da conservação da ‘autopoiese ‘ [5] e da conservação da relação de congruência entre organismo e meio ou acoplamento estrutural que um observador chama adaptação.

É mais fácil poder distinguir, nestas circunstâncias, que a relação de acoplamento estrutural entre organismo e meio é uma dinâmica de transformação constante. Não é um processo fixo, portanto a harmonia que surge desta relação de congruência entre um e outro está permanentemente aberta à sua própria desaparição, já que enquanto não forem satisfeitas as condições de possibilidade que dão estabilidade à relação de mútua congruência, esta se desintegra e o ser vivo morre.

Poder ver tudo isto é crucial para ver a dinâmica fundamental que oculta a palavra sustentabilidade. Por exemplo, para compreender que no domínio ambiental o problema ecológico que as empresas e comunidades humanas criam não está na degradação que geram do ambiente em que se encontram ao tirar elementos e ao verter resíduos. Isto é feito por todos os seres vivos, mas sim que o problema surge na irresponsabilidade e inconsciência com que nos conduzimos a respeito desta relação com o meio. Os seres humanos são os animais que maior transformação da biosfera geram, e cada vez mais com maior velocidade.

Se uma pessoa extrai os chamados recursos naturais mais rápido do que pode recolocá-los, gera pobreza, se uma pessoa lança resíduos em quantidades tão enormes que a terra não pode absorvê-los, ou resíduos não absorvíveis, gera destruição ambiental. O assunto de fundo é o modo em que transformamos nosso entorno, não a dinâmica de transformação, pois esta é inevitável.

Faremos isso conservando as condições possibilidade para a conservação a longo prazo da relação de congruência entre a ‘antroposfera’ e a biosfera? Faremos isso só do modo menos inadequado? Ou simplesmente do modo mais barato possível a curto prazo? Como iremos vendo, este, como todos os temas humanos, é um tema ético.

Retomando a pergunta pela dinâmica subjacente ao que se distingue ou quer distinguir ao falar de sustentabilidade, deve-se dizer que a sustentabilidade não é um processo que faça parte das dinâmicas ecológicas da biosfera; no mundo natural não há nem sustentabilidade nem não sustentabilidade, esta é uma distinção que como observadores trazemos à mão ao limitar um certo âmbito de processos que gostaríamos que se conservassem em um certo período temporal. E para ver o domínio em que existe a distinção da sustentabilidade temos que falar da cultura, que é o nicho que geramos como humanos ao habitar nosso meio social. Aproximemo-nos disto falando antes do conversar.

Na vida diária um observador distingue por conversação um fluxo de coordenações de ações e emoções [6] que distinguimos como ocorrendo entre seres humanos que interagem recorrentemente na linguagem [7]. Nestas circunstâncias há pelo menos dois fenômenos fundamentais que um observador traz à mão quando ele ou ela distingue uma conversação:

a) as coordenações de ações recursivas que aparecem como coordenações de condutas,

b) as coordenações de emoções que aparecem como coordenações de domínios de ações.

As conversações como operações na linguagem são operações em domínios de ‘consensualidade’ que podem se expandir, restringir ou desaparecer, com ou sem a aparição de novos domínios de ‘consensualidade’ ao longo delas. Isto é evidente em nossa vida diária quando experimentamos um aumento, uma diminuição ou uma mudança, em nossa intimidade com aqueles com os quais nós conversamos, como algo que ocorre enquanto a conversação ocorre.

Há vários tipos de conversações e estes diferem nos tipos de coordenações de ações e emoções envolvidas. Cada tipo de conversação está definido por um padrão ou configuração particular de coordenação de ações e fluxo emocional. Ainda mais, todos os tipos de conversações podem ocorrer em muitos domínios diferentes de ações e em muitos contextos emocionais diferentes, sem importar o domínio
operacional ou o domínio de realidade no qual as ações ocorrem.

Cada ser humano usualmente participa de muitas conversações diferentes, simultânea ou sucessivamente, que se inter seccionam umas com outras através de sua realização em sua ‘corporabilidade’. Como seres humanos, vivemos, de fato, em comunidades que existem como redes de conversações entrecruzadas, não inter seccionadas, de diferentes tipos, que se igualam umas com outras em seu fluxo através de sua intersecção em nossas corporalidades.

O que é que distinguimos ao falar de cultura então? Os seres humanos surgem na história da família de primatas bípedes à qual pertencem, quando o ‘linguagear’ como uma maneira de conviver em coordenações de coordenações de condutas consensuais, deixou de ser um fenômeno ocasional, e ao se conservar geração após geração em um grupo deles, tornou-se parte central da maneira de viver que definiu dali em diante nossa linhagem. Aquilo que conotamos na vida cotidiana, quando falamos de cultura ou de assuntos culturais, é uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de conviver humano como uma rede de coordenações de emoções e ações que se realiza como uma configuração particular de entrelaçamento do agir e o emocionar da gente que vive essa cultura.

Como tal, uma cultura é constitutivamente um sistema conservador fechado, que gera seus membros na medida em que estes a realizam através de sua participação nas conversações que a constituem e definem. Deduz-se disto também, que nenhuma ação particular e que nenhuma emoção particular define uma cultura porque uma cultura como rede de conversações é uma configuração de coordenações de ações e emoções.

Do anterior se deduz que diferentes culturas são distintas redes fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras distintas de viver humano como distintas configurações de entrelaçamento do ‘linguagear’ e do emocionar. Também se deduz que uma mudança cultural é uma mudança na configuração do agir e do emocionar dos membros de uma cultura, e que como tal tem lugar como uma mudança na rede fechada de conversações que originalmente definia a cultura que muda.


Os extremos de uma cultura, como maneira de viver, são operacionais e surgem com o estabelecimento desta. Ao mesmo tempo, o pertencer a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam. E qualquer ser humano pode pertencer a diferentes culturas em diferentes momentos de seu viver, segundo as conversações nas quais participe, ele, ou ela, nesses distintos momentos.

Com isto em mente podemos ver que o que se chama sustentabilidade consiste em uma rede fechada de conversações que traz à mão recursivamente a viabilização, geração, realização e conservação das condições de possibilidade para a conservação do bem-estar da ‘antroposfera’ e da biosfera. Isto é, em último termo a sustentabilidade é uma cultura, cuja orientação fundamental se encontra na geração de processos que permitem possibilitar a conservação de uma Matriz Biológico-Cultural da Existência Humana cursando no bem-estar, e, portanto de uma Matriz Biológica da existência dos seres vivos que também se conserva cursando no bem-estar.

Deve-se recalcar aqui que a noção de bem-estar não é um principio explicativo nem uma definição arbitrária, mas sim uma abstração de um aspecto fundamental do viver dos seres vivos em geral. Enquanto o que define o curso que segue a deriva evolutiva de uma linhagem está dado pelas preferências e gostos dos organismos (+), o curso que segue o devir evolutivo surge momento a momento definido pela conservação do bem-estar dos indivíduos que o realizam. Ou o que é igual; o que guia o curso que segue o devir evolutivo de uma linhagem é o curso da conservação do viver dos organismos em congruência dinâmica com o meio.

Mas no discurso evolutivo tradicional que fala da adaptação ao meio como uma conquista que se torna possível ao seguir o caminho competitivo das vantagens adaptativas fica de fora toda a compreensão do fenômeno do bem-estar do viver, e é tachado como algo subjetivo. Mas a partir do que nos mostra a compreensão da "deriva natural", vemos que os seres vivos deslizam no viver e conviver na conservação do acoplamento estrutural na conservação do viver. Isto é, na conservação do bem-estar natural, onde o bem-estar ocorre momento a momento a conservação do viver, que é o bem-estar natural desse momento e que se não ocorrer o organismo morre.

Entender que a sustentabilidade é uma rede fechada de conversações nos permite nos conscientizar que a responsabilidade fundamental pela mesma está em nossas mãos, a biosfera não fará nada pela sustentabilidade.

E a sustentabilidade é uma rede fechada de conversações porque não é meramente uma conversação, mas um entrelaçamento dinâmico de múltiplas conversações e ainda de redes fechadas de conversações nos múltiplos âmbitos em que de fato tem presença a preocupação (ou ocupação) ética pela sustentabilidade, tanto no espaço ambiental, como no econômico, empresarial, governamental, inter estatal, etc.

Pois bem, ao falar de ética de novo não estamos nos referindo a uma definição ou a um princípio filosófico, estamos mostrando uma dinâmica relacional humana que todos podemos constatar no viver cotidiano ao abstrair as situações nas quais falamos de condutas éticas.

Um observador diz que uma pessoa tem conduta ética quando vê que ele ou ela se conduz, escolhendo suas atividades, de modo a não danificar outro ou outros em seu âmbito social e ecológico. Porque essa pessoa se importa com o que pode acontecer aos outros em função do que ele ou ela deixa de fazer, simplesmente porque se importa com esse outro ou outra. Quer dizer, não vive cuidando da relação com os outros através do respeito de normas e sim porque se importa com as pessoas.

Neste sentido cabe distinguir entre ética e moral.

A ética tem um fundamento biológico, dada nossa história evolutiva humana - de seres sociais. Nós nos importamos e nos comovemos, espontaneamente, com o que acontece com os outros. Na ética me importo com as pessoas através do que me importam as pessoas, sem justificativas racionais, em troca na moral o que nos importa são as normas, e, portanto o fundamento da moral é cultural e há tantas morais diferentes como critérios culturais, em compensação ética há uma só.

É assim como podemos nos conduzir de um modo ético, mas imoral, como quando Jesus salva a prostituta de morrer apedrejada. Pois a moral judia da época demandava este castigo pelo seu critério de validade. Ou podemos nos conduzir de um modo moral, mas não ético, como acontece cada vez que uma empresa joga certa quantidade de resíduos tóxicos no ambiente sabendo que causa um dano ecológico, mas que por lei está permitido. E também obviamente pode-se ser ético e moral, e imoral e não ético.

Pois bem, isto não é um relativizar a ética, mas mostrar a dinâmica que a constitui, se tratamos de construir justificativas para nosso operar ético, estaremos nos conduzindo moralmente, e a ética não requer justificativas justamente porque é uma consciência, um sentir, cada um sabe quando age através do desejo de acolher o outro, outra ou o outro, e quando não.

O que tenha adquirido importância: o desejo consensual por gerar sustentabilidade para o mundo humano e o mundo natural, tem a ver com que estamos nos conscientizando do dano que estivemos gerando tanto à biosfera como à ‘antroposfera’. E que em última instância este dano sempre nos devolve os indivíduos e as distintas comunidades que formamos dada a natureza sistêmica sistêmica dos processos biológico-culturais.

De fato hoje em dia nos encontramos em uma encruzilhada entre duas eras, estamos às portas da possibilidade de uma nova mudança cultural onde a preocupação ética com as pessoas, comunidades e biosfera inteira, é o ponto cardeal em torno do qual todo o outro pode mudar se é que temos o desejo e a consciência adequada. Mas antes de ver isto, vejamos alguns aspectos fundamentais do humano, o social e o educar.

Fundamentos da unidade individual-social e da educação

Vivemos um momento histórico no que os seres humanos geram dor e sofrimento em suas vidas, nas vidas de outros e em seu entorno. Como nos acontece isto? Os seres humanos enquanto seres que vivem em comunidades não estão determinados geneticamente. Precisam viver com seres humanos para existir como seres humanos: necessitamos um viver social para ser seres sociais, e adoecemos o corpo e a alma quando não temos esse viver social, o qual se realiza através da convivência cultural, e o tipo de convivência social que realizarmos dependerá do modo cultural que vivermos e convivermos.

Mas mesmo nesse viver social, precisamos de nosso viver individual que é o que dá forma ao nosso viver. E cuja conservação guia o curso de nosso devir por quaisquer afazeres que tivermos que passar na comunidade a que pertencemos. O sentido do viver individual se adquire através da concepção na convivência com os adultos com quem temos que conviver no processo de tornar-nos pessoas no conviver social. O sentido individual do viver é um sentido individual-social. Não há contradição entre o individual e o social além das teorias que há mais de 200 anos puseram discursiva e operacionalmente estes âmbitos em oposição através de um substrato epistemológico dualista e linear.

De fato em um sentido estrito tampouco há, em termos dos processos que as constituem, separação entre empresas públicas e privadas, a dinâmica que sustenta ambas e as torna possíveis se dá  unitariamente entrelaçada. Sem o espaço público que os cidadãos usufruem em sua convivência não poderiam surgir empresas privadas, estas tomam desse espaço tudo o que precisam para subsistir e entregam a esse espaço o que a sociedade requer para sua subsistência. E mais, neste sentido, é que podemos dizer que toda empresa é pública em último termo. Pois seus afazeres sempre têm conseqüências no espaço público, obviamente não é pública no âmbito da propriedade dos acionistas, mas sim na dinâmica que possibilita, gera, realiza e conserva sua existência na matriz mais ampla na qual existe e onde fazem ou não fazem sentido seus produtos e serviços.

Somos indivíduos em um âmbito social, e o social surge do conviver de indivíduos. Por isto em uma comunidade humana harmônica, sem discriminações, sem abusos, aberta à colaboração no mútuo respeito, não há contradição entre o individual e o social.

No mundo, em geral, nos encontramos vivendo a negação sistemática das condições relacionais que tornam possível que o crescimento das crianças e jovens possa transcorrer como um processo no qual se transformem em pessoas adultas, com um sentido de viver individual-social, capaz de gerar e conservar uma convivência social de colaboração. Na geração de um conviver na honestidade, no mútuo respeito e no bem-estar, fundamentos da convivência democrática. E fazemos esta negação de maneira principalmente inconsciente, mas também consciente, em casa, na rua, nas escolas, no trabalho, meios de comunicação, espaços de recreação, etc. ao desacreditar, negar, invalidar, a possibilidade de que a preocupação e a conduta ética esteja de fato no centro de nosso agir individual e social  espontâneo.

Dizemos, proclamamos, argumentamos que o futuro é incerto, que nada é seguro, que em poucos anos os conhecimentos se tornam obsoletos. Que temos que conquistar o sucesso a qualquer preço. E o dizemos, proclamamos e argumentamos: na família, na rua, nas universidades, na vida pública, nos programas de televisão.

Mas nos surpreende que haja toxicomania juvenil, delinqüência juvenil, violência escolar, violência familiar, abusos trabalhistas, gravidez juvenil, desonestidade. Como os meninos, meninas e jovens poderiam aprender outro viver se esse é o viver e conviver que nós, adultos, parecemos validar com nossas condutas. Com nossa falta de ética em nossas atividades produtivas, materiais e intelectuais. Nossas promessas não cumpridas, a violação de nossos acordos, nossa falta de reflexão e nossa não disposição a refletir, ver e corrigir nossos erros?

Olhemos para nosso início: nascemos como bebês, na total confiança, estrutural, implícita, de que haverá um mundo adulto que nos acolherá, conterá e amará. Viemos ao mundo na mesma confiança implícita que tem a borboleta ao sair da crisálida, na confiança de que haverá um mundo ali de néctares e flores. Isto é, nosso feitio biológico surge em coerência e íntima relação ao feitio biológico do meio que nos conterá e com relação ao qual poderemos conservar nosso acoplamento estrutural se forem dadas as condições para que isso seja possível.

Os seres humanos são criadores de mundos. O bebê humano, o menino, a menina surgem em uma dinâmica operacional-relacional que criará o mundo que viverá, na alegria ou na dor, com ou sem respeito por si mesmo, na honestidade ou na mentira, no bem-estar ou no mal-estar, no amar ou no ressentimento, mas sempre será com outros ou contra outros seres humanos, em um desejo conquistado ou frustrado de pertencer a um âmbito social que o acolha, que o respeite, onde seu ser pessoa faz sentido. Mas como isso acontece?

As formas juvenis de todos os mamíferos se transformam na convivência com os adultos e outros juvenis com quem convivem. Os meninos, meninas e jovens humanos se transformam ao longo de seu crescimento na convivência com os adultos humanos com quem convivem incorporando-se em um âmbito social ou outro conforme sentirem que têm presença e que sua vida faz sentido individual-social, e conforme a inspiração que surgir neles nesse conviver. Então qual é a dinâmica constitutiva da aprendizagem? Aprender é sempre um resultado da própria deriva de transformações na convivência, aprendemos com ou sem educação, aprendemos com ou sem ensino. E conforme for a convivência será o que aprendamos.

Os bebês nascem na confiança implícita de que haverá uma mãe, pai ou adulto que os receberá com ternura, e que criará com outros adultos um âmbito de convivência acolhedor no que pode confiar de fato como o mais natural do fluir de seu viver. Todos os seres vivos sociais vivem assim no âmbito social ao que pertencem. A confiança mútua é o fundamento da convivência humana. Quando essa confiança se quebra, é porque aparece a traição, que pode ter muitas formas. E quando um ser humano vive a traição; surgem a dor, o desencanto, o ressentimento, a depressão, o estresse, e o desejo de ir embora, de procurar outro âmbito humano em que se possa recuperar essa confiança perdida no desejo de viver e conviver na tranqüilidade psíquica e corporal que emerge dessa confiança fundamental.

E esta confiança fundamental se perde quando há promessas explícitas ou implícitas não cumpridas, traições de consensos que são vividas como legitimamente esperáveis, em qualquer momento da vida. Só que os meninos, meninas e jovens não têm muitos recursos para recuperar essa confiança como podem ter as pessoas mais velhas que têm algum grau de autonomia no espaço social, seja esta econômica ou de poder de decisão. Onde falhamos, em nossas ações ou em nosso compromisso com o que dizemos que queremos de nossa convivência social?

Falamos de pessoas mais velhas para fazer uma diferença de uma pessoa adulta.

Uma pessoa pode ser mais velha e não necessariamente viver e conviver como uma pessoa adulta que respeita a si mesma e que se encontra em seu viver e conviver nesse eixo fundamental do centro de si mesmo através do qual pode dizer sim ou não através de si. Uma pessoa não pelo fato de ser maior de idade, de ter um trabalho, ou ter filhos, transforma-se em uma pessoa adulta, a pessoa adulta surge se vive e convive através do centro ético fundamental da convivência social.

A violação da confiança fundamental da convivência social é o inicio da ‘periferização’ tanto juvenil como de pessoas mais velhas, tanto em situação de pobreza como de riqueza econômica. Esta ‘‘periferização’’ humana aparece nas pessoas como rebeldia, agressão, depressão, delinqüência, não participação, desconfiança, toxicomania, quando não criamos o espaço social para viver e conviver no bem-estar psíquico e material que lhes prometemos de maneira explícita ou implícita.

E se falamos da dinâmica subjacente à não sustentabilidade social global, em seu núcleo encontraremos a dinâmica multidimensional da ‘‘periferização’’ humana, já que é esta a que desintegra as condições de possibilidade para a realização e conservação das relações de congruência ou acoplamento estrutural no plano relacional humano da ‘antroposfera’.

O doloroso é que somos nós mesmos quando não nos comportamos como pessoas adultas responsáveis que cultivam a ‘‘periferização’’ humana, ao fazer promessas sociais que não vamos cumprir, ao reduzir assim as possibilidades dos meninos, meninas e jovens de crescer no bem-estar que traz consigo um conviver com sentido social. A ‘‘periferização’’ humana ocorre como qualquer modo de viver e conviver cuja conseqüência seja a alienação que produz uma convivência que esteja longe do respeito por si mesmo e pelos outros. Não só a ‘‘periferização’’ humana tem presença como modo de coexistência onde há pobreza material, também existe ‘‘periferização’’ humana onde não há problemas de índole econômica, bastaria ver como a violência intra familiar e a toxicomania são dinâmicas muito presentes nos estratos economicamente acomodados.

E que isto nos mostra? Que a ‘periferização’ humana ocorre quando vivemos e convivemos fora de nossa condição biológica fundamental de seres sociais que é o amar. O amar ocorre como o domínio das
condutas relacionais através das quais cada um, o outro ou a outra surge como legítimo outro em convivência com cada um. Enquanto o amar é um ocorrer, um suceder, o que um observador distingue como conduta amorosa, é uma dinâmica relacional de convivência, de co-existência centrada no respeito por si mesmo, pelos outros e outras, no espaço social ao que se pertence. Amar é ver, ver é amar,
ou seja, não estamos falando de sentimentos, não falamos de valores, de ser carinhoso ou compassivo, e sim da dinâmica operacional da mútua aceitação que deu origem ao âmbito social desde os primeiros insetos sociais.

E quando, onde e como fomos tão cegos para gerar espaços onde é possível que nossos meninos, meninas e jovens sejam “periferizados”? As pessoas não nascem delinqüentes, tornam-se, segundo o modo de conviver que tiveram.

Qual é nossa possibilidade de sair desta encruzilhada dolorosa? Encruzilhada que continuamos conservando, realizando e gerando em nosso modo de nos relacionar nesta cultura que vivemos. Nossa grande possibilidade é nos transformarmos em pessoas adultas amorosas, sérias e responsáveis. Os meninos, meninas e jovens desejam pessoas adultas em quem confiar e a quem respeitar.

Há só um caminho de saída, e que é um fato de nossa constituição biológica: a Biologia do Amar. O procedimento de ação social é gerar nas comunidades humanas a Reflexão – Ação - Ética em toda a atividade tendo a biologia do amar como o referente de reflexão e ação sempre desde a concepção à autonomia adulta.

O bebê nasce amoroso, ou seja, todos nós nascemos amorosos, mas com freqüência fomos traídos com a negligência, o castigo, o abandono, a violação corporal e psíquica. E é a partir dessa traição que o menino, menina, o jovem, afastam-se, tornam-se periféricos, e em seu ressentimento procuram outro âmbito social que os acolham, seja através da delinqüência, das drogas, das teorias que justificam a discriminação e a agressão. Enfim é um caminho que os leva irremediavelmente a doenças da psique, do corpo e da alma que se expressam através de fanatismos, autoritarismos, transtornos psíquicos e fisiológicos como bulimias, anorexias, automutilação.

Os seres humanos jovens na potência de seu crescimento iniludível buscam um sentido para seu viver individual que lhes dê um pertencer social legítimo, mas se não o encontram se tornam periféricos na ira, na agressão social e na rebeldia que marcha rumo ao ressentimento. Os jovens querem desesperadamente adultos para respeitar, adultos que os acolham, respeitem; adultos que mostrem o caminho para um mundo amoroso desejável; adultos que estejam dispostos a refletir, a perceber seus erros e a corrigi-los.

Os jovens querem sentir que têm presença, querem sentir que são parte legítima do viver em um âmbito social no que seu viver tem um sentido individual-social. E quando os jovens sentem que esse âmbito social não emerge, ou sentem que quando parece estar aí os trai, rejeita e invalida, na tentativa de obter ou de recuperar a presença que querem, através da insegurança sobre seu próprio valer que essa situação gera, os homens entram no caminho do valentão que oprime o mais fraco, e as mulheres entram no caminho do cinismo que pretende uma autonomia que sabem que não têm.

Os jovens vivem na dor e sofrimento de não serem vistos, de não terem sentido individual-social, e através do ressentimento que isso gera procuram pertencer a alguma comunidade diferente, alheia, transgressora, aceitando uma “lavagem cerebral” que promete lhes dar presença e sentido individual-social na audácia de serem negadores do mesmo âmbito humano ao que anseiam pertencer.

A saída da negação individual-social é sistêmica recursiva, multidimensional, e requer a co-inspiração de um Projeto País, e posteriormente um Projeto Mundial, entendido como um propósito de convivência que cultive de maneira cotidiana a espontaneidade do mútuo respeito em um âmbito de convivência onde todas as pessoas são cidadãos legítimos participantes de sua criação e conservação.


Alguns elementos fundamentais da co-inspiração em um Projeto de País [8]:

A) Que se ocupe da dinâmica cotidiana da transformação dos meninos, meninas e jovens em pessoas adultas, em cidadãos que respeitam a si mesmos, com sentido ético, e com autonomia de reflexão e ação, no curso iniludível de seu crescimento espontâneo;

B) Que se ocupe da contínua criação e conservação cotidiana de um espaço de convivência de pessoas adultas que facilitam e conservam o que estes escolherem espontaneamente a conduta ética e responsável em suas distintas atividades quaisquer que sejam;

C) Que se encarregue de abrir espaços para que os cidadãos possam e desejem orientar e guiar sua criatividade e seus conhecimentos através de sua consciência ética e social. De modo que seu viver e seu fazer contribuam, quaisquer que sejam estes, para a geração de uma ‘antroposfera’ nacional criadora de bem-estar para todos seus membros na conservação da biosfera que os torna possíveis.

Âmbitos:

1. Para isto todos os colégios devem ter âmbitos para atividades esportivas, artísticas, técnicas, científicas, literárias que posam captar a energia vital, a imaginação criativa e a ação efetiva de todos os jovens, guiados e acompanhados por mestres acolhedores e inspiradores, em um conviver que pelo simples fato de ser vivido resultará ampliador do respeito por si mesmo. Junto a isto é fundamental que, além disso, os colégios considerem âmbitos de acolhida para as famílias.

2. A família como núcleo fundamental do processo transformador de seus membros deve ser convidada e incorporada a uma participação que amplie a consciência do essencial que são as pessoas adultas com quem os meninos, meninas e jovens compartilham desde seu nascimento a cotidianidade do viver. Pois é responsabilidade dos pais, mães, avós, pessoas adultas em geral pelo simples fato de viver e conviver com eles, a de ser o primeiro referente ético e amoroso na vida dos mais jovens.

A família não é só a provedora de um lugar onde viver, de alimento, de procurar um ninho, é também procuradora de um nicho formado por pessoas adultas que respeitam a si mesmos como seres autônomos. Se isto acontecer, os meninos, meninas e jovens surgirão em seu viver de maneira espontânea em um espaço psíquico e relacional onde não se fala de respeito, mas onde se vive e convive no respeito como modo de conviver natural. A grande tarefa dos adultos com quem os meninos, meninas e jovens  compartilham grande parte do trânsito fundamental de sua história vital é procurar gerar todos os espaços para que estes, por sua vez, transformem-se em pessoas adultas que respeitam a si mesmas.

3. É necessária também uma profunda participação consciente e responsável dos outros atores sociais que são parte da ‘antroposfera’ na que os meninos, meninas e jovens crescem, tais como as empresas e consórcios, os meios de comunicação, políticos, instituições educativas e em geral todas as pessoas adultas que de alguma ou outra forma são um referente transformador para a cidadania.

É neste âmbito em que as chamadas cinco forças, (Governos, empresas, setor acadêmico, organizações da sociedade civil e redes cidadãs) têm uma oportunidade e uma relevância fundamental na hora de abrir espaços de conversação, colaboração e interlocução entre comunidades e instituições para a consolidação da convivência democrática.

O espaço psíquico é a fonte inconsciente de toda ação consciente e inconsciente, e como tal define em cada instante o caráter relacional de tudo o que os seres vivos e os seres humanos fazem. No suceder de nosso viver humano fluímos no habitar sucessivo o entrelaçado de muitos espaços psíquicos que definem em cada instante o caráter de nossa atividade nesse instante. Cada vez que evocamos um espaço psíquico evocamos um âmbito de ‘fazeres relacionais’ no viver e conviver.

Os seres humanos, como todos os seres vivos, são seres emocionais cujo fazer e sentir, em todas as dimensões de seu viver são guiados momento a momento por seu fluir emocional. O que é peculiar nosso é que entre os seres vivos os seres humanos existem no ‘linguagear’, e é através do ‘linguagear’ que são seres racionais que usam a razão para justificar ou negar suas emoções. Isto é, mesmo que digamos que agimos pela razão, são as emoções, os desejos, as preferências, o fato de querer ou não querer fazer alguma coisa, o que determina os argumentos racionais que usamos para fazer ou não fazer alguma coisa.

É por isso que um Projeto País não é um conjunto de fazeres possíveis, não é um conjunto de argumentos racionais que justificariam esses fazeres e negariam outros, e sim que um espaço emocional, uma configuração de desejos, um espaço psíquico-relacional que determina em cada instante que fazeres e quais argumentos racionais aceitamos, ou rejeitamos, como operações que nos permitirão realizar nossos desejos, assim como o que tenhamos ou não a energia emocional (a vontade) para fazê-lo.

A iniqüidade é um espaço psíquico-relacional sistêmico e recursivo no que consciente ou inconscientemente se conserva e se quer conservar a dinâmica relacional sistêmica em que vive a discriminação e a não sustentabilidade das comunidades humanas. A conservação do viver no que os meninos, meninas e jovens crescem em um viver e conviver sem sentido individual-social em sua realização pessoal, ou o perdem no caminho relacional que deveria guiá-los à vida adulta de uma convivência democrática, ocorre no espaço psíquico da iniqüidade.

A agressão, o abuso, o engano, a desonestidade, a exploração, a rapina, são todos aspectos de um viver e conviver no espaço psíquico da iniqüidade. O caminho de saída da psique da iniqüidade é a biologia do amar: o operar espontaneamente no domínio das condutas relacionais através das quais cada um, o outro, a outra, ou o outro, surge como legítimo outro na convivência com cada um. E isto é possível, precisamente, porque os seres humanos mesmo podendo cultivar a agressão, a negação do outro, são em sua condição fundamental seres amorosos, seres que adoecem o corpo e a alma no ‘desamar’.

Ao falar de espaço psíquico estamos conotando a dinâmica operacional relacional que como o presente histórico da arquitetura dinâmica da unidade mutante organismo-nicho, constitui em cada instante a trama relacional e operacional que um organismo pode viver. Em nós, seres humanos, o ‘linguagear’ é parte central do nicho na relação dinâmica organismo-nicho, e o que fazemos e evocamos em nosso conversar e nosso refletir ao longo de nosso viver e conviver contribui para configurar os espaços psíquicos que vivemos em nosso viver relacional. Por isso se queremos sair do espaço psíquico da iniqüidade devemos mudar nosso dizer e nosso pensar tanto como fundamento da mudança de nosso fazer. O respeito se vive respeitando, a honestidade se vive na conduta honesta; o respeito gera mútuo respeito, a honestidade gera mútua confiança, e, o mútuo respeito mais a confiança mútua, geram colaboração. O mútuo respeito, a confiança mútua e a colaboração abrem o espaço para a co-inspiração na criatividade geradora de bem-estar individual – social - ecológico.

Quando se sabe que se sabe não se pode fingir que não se sabe. O saber que se sabe na biologia do amar é o fundamento do viver e conviver individual na Reflexão – Ação - Ética.

Aprofundemos o tema central, a educação. No momento histórico que vivemos a mudança de orientação que desejamos em nosso conviver não ocorrerá espontaneamente, requer o compromisso, a consciência de um ato intencional, requer que queiramos fazê-lo, requer uma mudança através da reflexão que abre o espaço para a ação desejada através da vontade de fazê-lo. Toda conduta humana surge em um âmbito emocional íntimo inconsciente que constitui o espaço operacional. Que especifica, instante a instante, no sentir de uma pessoa, o que lhe é possível e o que não lhe é possível, o que lhe é desejável e o que não lhe é desejável em seu viver relacional.

E mais ainda, todo ser humano aprende desde seu nascimento na companhia dos mais velhos com quem convive a matriz emocional-operacional na que realiza seu viver como membro particular participante ou periférico da cultura da comunidade que o acolhe ou rejeita. Se um bebê, menino, menina ou jovem, cresce em um âmbito amoroso e afetuoso que o acolhe e respeita como um membro legítimo da comunidade social em que vive, cresce como um ser social e ético capaz de colaborar e co-inspirar em um projeto comum sem temor a desaparecer ao fazê-lo.

Como se conseguiria isso agora?

Procurando fazer que esse bebê, menino, menina ou jovem, se encontre no curso de sua transformação em adulto com mais velhos próximos. No lar, na rua, na escola e na universidade. Que o vejam, o escutem, não mintam, não traiam. Aos quais pode respeitar. Isso é o que todos os meninos, meninas e jovens desejam: pessoas adultas que sejam em seu conviver com eles “educadores sociais” seres cujo viver e conviver desejam consciente ou inconscientemente repetir.

Nosso olhar recursivamente sistêmico através do entendimento da biologia cultural, explica este fenômeno que está ocorrendo no presente que cada um vive de forma dinâmica, e de maneira consciente ou inconsciente enquanto estamos vivos, que a Educação é uma transformação na convivência.

Portanto, é a tarefa educativa, em si, somente de mestres, mestras? Pais, mães? Comunicadores, comunicadoras?

Agora uma pessoa pode se perguntar O que acontece com a educação nessa transformação na convivência? Trata-se de que os meninos, meninas e jovens cheguem a ser adultos de certa maneira. Si olharmos o mundo animal podemos ver que os adultos não o são no momento da sexualidade, e sim quando deixam de ser dependentes de outros em um sentido básico para sobreviver. Sempre estão relacionados com outros, mas há um momento em que o animalzinho tem um controle do mundo que lhe permite agir com autonomia e esse é o momento de tornar-se adulto.

Nosso verdadeiro problema através da perspectiva da educação é que isso vai acontecer de qualquer forma. Pode ser que alguns meninos não o consigam e nesse caso se diz que eles são adultos dependentes; mas na verdade não são adultos, não têm autonomia, não decidem por si, para bem ou para mal.

Do que se trata é que os meninos, meninas e jovens vivam um espaço experiencial de transformação na convivência. Que começa no útero, no qual vão se transformando, de modo que esse espaço gere as possibilidades de autonomia na interação, de forma que chegue um momento em que sejam pessoas adultas.

Um espaço de convivência onde ele ou ela se transforma em adulto. Como um ser que respeita a si mesmo. Respeita aos outros. Pode colaborar. É autônomo. É responsável.

A educação é uma transformação na convivência. Os meninos, meninas e jovens se transformam com os adultos com os quais convivem. Em termos do espaço psíquico, submergem-se nas conversações da vida das pessoas adultas. Então eles vão depender do que acontecer na educação da psique da pessoa adulta. Se queremos convivência democrática, teremos que conviver de uma maneira que implique essa psique e as crianças crescerão fazendo as coisas, fazendo as conversações e vivendo o emocionar desse tipo de convivência.

O que nos acontece é que quando estamos falando de educação o que queremos é preparar as crianças de um ponto de vista técnico para operar no espaço do mercado, para operar no âmbito da procura do sucesso. E isso é alienante, porque é cego com respeito ao mundo humano no amar.

É uma educação que nega a si mesma, que não vê os meninos, meninas e jovens, educandos e educandas. Não os vê porque tem a atenção voltada para o futuro, no que os meninos devem ser no futuro. Mas o ponto central é que o trânsito até a vida adulta é um trânsito de uma vida dependente a uma vida autônoma. Ser autônomo significa que vai agir através de si. Vai dizer sim ou não, através de si e agüentará as conseqüências. E isso é o essencial da educação, não as técnicas, não as práticas nem as teorias.

Nós vivemos uma confusão enorme em pensar que os temas da convivência, que os problemas humanos em geral se resolvem com a tecnologia ou com a ciência. Nem a ciência nem a tecnologia resolvem os problemas humanos; os problemas humanos são todos de relação. Pertencem à emoção.

Os problemas tecnológicos, os problemas científicos, são absolutamente simples. Têm a ver com habilidades de manipulação, seja para estudar alguma coisa ou para construir alguma coisa. Mas a convivência não é dessa natureza. A convivência tem a ver com as emoções, tem a ver com o respeito, com o amar, com a possibilidade de escutar, de respeitar-nos nas discrepâncias. Tem a ver com fazer um mundo de convivência no qual seja grato ou não grato viver.

A tarefa central da educação e da democracia é que este trânsito rumo à vida adulta seja na configuração de um mundo que seja grato para o menino, para a menina e para os jovens. No qual se pode colaborar e se pode aprender tudo porque não há medo de desaparecer na colaboração e não se tem vergonha de não saber.

Se os meninos, meninas e jovens convivem com adultos amorosos, sérios e responsáveis. E estes desfrutam de seus afazeres, ou seja, amam o que fazem, seja o que for. E o ensinam no respeito e atenção às dificuldades que, em algum momento, puderem ter os meninos, meninas e jovens com quem convivem. Esses meninos meninas e jovens incorporarão em seu viver, de maneira espontânea, o olhar matemático, o olhar biológico, o olhar da mecânica ou da gastronomia e estas matérias ou ofícios vão ser, por assim dizer, o instrumento de convivência através do qual esse educando vai se transformar em um adulto socialmente integrado. Com confiança em si mesmo, com capacidade de colaborar e aprender qualquer coisa sem perder sua consciência social, e, portanto ética.

Nestas circunstâncias: quem é um educador social? Qualquer pessoa adulta que escolhe viver na psique de um criador de espaços de convivência nos quais os meninos, meninas e jovens podem crescer desejando chegar a ser pessoas adultas autônomas, sérias, alegres e responsáveis, com consciência ética e social em um cosmos humano mutante que eles geram como um âmbito desejável para viver e conviver nele no mútuo respeito através do respeitar a si mesmos como seres primariamente amorosos.

Isto é possível? Sem dúvida é possível. De fato todos os adultos mais velhos, todas as pessoas adultas viverão assim se não estiverem presos em teorias educacionais, filosóficas ou políticas que os negam no desejo consciente ou inconsciente de conservar um conviver em relações de autoridade e submissão, de concorrência, sucesso e vício pelo poder e pelo lucro.

A mãe, o pai, o mestre, os políticos, enfim, todos os adultos desde o momento que em seu viver se transformam em pessoas adultas, autônomas, reflexivas, que vivem e convivem através do centro de si mesmas configuram com seu viver o melhor espaço de boa terra para o crescimento dos meninos, meninas e jovens.

Ao viver assim nos transformamos em um educador social, sem esforço, só no desejo de viver e conviver com os meninos, meninas e jovens em um espaço onde eles não são uma impertinência, onde todas as suas perguntas são legítimas, onde não se castiga o erro, e onde não há medo de desaparecer porque se pensa diferente e é possível refletir.


A mudança cultural, a mudança de era e o fim da liderança na era da co-inspiração.

Vejamos a dinâmica envolvida na mudança cultural. À medida que uma cultura, como maneira de viver humana aparece à nossa observação como uma rede particular de conversações, podemos ver que sua dinâmica constitutiva é uma configuração particular de coordenações de coordenações de ações e emoções (vg. como entrelaçamento particular da linguagem e do emocionar). E podemos ver então que uma cultura surge quando uma comunidade humana começa a conservar geração após geração uma nova rede de coordenações de coordenações de ações e emoções como sua maneira própria de viver, e desaparece ou muda quando a rede de conversações que a constitui deixa de se conservar. Portanto, para entender a mudança cultural, devemos ser capazes: tanto de caracterizar a rede fechada de conversações que, como prática cotidiana de coordenações de ações e emoções entre os membros de uma comunidade particular, constituem a cultura que essa comunidade vive. Como de reconhecer as condições de mudança emocional sob as quais as coordenações de ações de uma comunidade podem mudar de modo que surja nela uma nova cultura.

Para isso é indispensável compreender o fundamento emocional do ser cultural; à medida que crescemos como membros de uma cultura. Crescemos em uma rede de conversações participando com os outros membros dela em uma contínua transformação consensual que nos submerge em uma maneira de viver que nos faz, e parece espontaneamente natural. Ali, à medida que adquirimos nossa identidade individual e nossa consciência individual e social, seguimos como algo natural o emocionar de nossas mães e dos adultos com os quais convivemos, aprendendo a viver o fluxo emocional de nossa cultura que torna todas nossas ações, ações próprias dela. Nossas mães nos ensinam, sem saber, e nós aprendemos delas, na inocência de uma coexistência não refletida, o emocionar de sua cultura, simplesmente vivendo com elas. O resultado é que, uma vez que crescemos membros de uma cultura particular, tudo nela nos parece adequado e evidente, e, sem percebermos, o fluir de nosso emocionar (de nossos desejos, preferências, rejeições, aspirações, intenções, escolhas...) guia nosso agir nas circunstâncias mutantes de nosso viver, de maneira que todas nossas ações são ações que pertencem a essa cultura.

É através da reflexão realizada até aqui que propomos ver a evolução do humano abstraindo, do que sua história biológico-cultural nos mostra, as sensorialidades e emoções fundamentais que a guiaram. Contudo nos centralizaremos fundamentalmente na última era por razões de espaço [9]. Assim falaremos de eras psíquicas mostrando as configurações do emocionar do viver cotidiano que segundo nosso parecer caracterizaram distintos momentos da história humana como distintos espaços psíquicos ou distintos modos de habitar nos que se deram, e de onde se deram, todas as dimensões do conviver relacional.

O conviver relacional foi vivido em cada instante de cada era psíquica em um presente em contínua mudança na que o fluir do emocionar surgia momento a momento do fundo histórico-operacional e filosófico-epistemológico imperante. O que dizemos com esta afirmação é que em cada momento da epigênese histórico operacional que configura as distintas eras psíquicas da humanidade, o ser humano conservou distintos desejos, teve distintos gostos e preferências cujo fundamento foi determinado momento a momento pelo habitar do presente que se vive.

As distintas eras psíquicas da humanidade se correspondem, segundo nosso pensar, com a dinâmica histórica de transformação integral da psique humana, desde sua concepção, passando pela infância, pela juventude, pela condição adulta e pela madureza reflexiva, que configura nelas, em cada instante, o como se vive. Onde se orienta e como se entende a natureza e o sentido do humano em seu pertencer à biosfera. Este transcorrer ocorre, na visão mítica, da vida humana, desde a concepção até seu término, na maturidade, como uma dinâmica recursiva. Na qual a sabedoria da maturidade leva ao início de uma nova história psíquica na geração seguinte, que pode ser mais desejável, porque implica a possibilidade da repetição do ciclo, mas com um deslocamento ampliado da consciência em uma maior coerência com o mundo natural. O suceder das eras psíquicas da humanidade de que falamos aqui, realiza um ciclo mítico, e possibilita um espaço reflexivo que no fundo é conhecido e re-conhecido através do próprio viver no conviver. Este suceder de eras psíquicas da humanidade vai desde a Era arcaica na origem do humano, à Era ‘pós-pós-moderna’, já citada antes, como uma era na qual se recupera a consciência e as ações perdidas no transcorrer histórico do pertencer humano à biosfera que é a existência de fundo na qual é possível e ocorre o humano. O recuperar desta consciência, em coerências sistêmicas, torna possível abrir e ampliar o olhar sistêmico recursivo que é constitutivo do humano como um ser vivo que pode refletir sobre seu próprio viver e os mundos que gera nesse viver.


Era psíquica arcaica:

Dinâmica emocional fundamental: o amar como um suceder espontâneo.

Esta Era nos fala da origem do humano na origem da família como um modo permanente de conviver na intimidade do prazer e do bem-estar, psíquico- corporal-relacional. Surge assim o ‘linguagear’ e o conversar como um modo de conviver na intimidade relacional nas coordenações de fazeres e emoções: Homo sapiens-amans: Presença espontânea do amar.

Surgimento da linhagem humana na conservação do conversar de uma geração a outra na aprendizagem das crianças.

Homo sapiens-amans amans: Presença da conservação do amar.

Nesta Era vivemos a história evolutiva da linhagem Homo sapiens-amans e suas ramificações possíveis em três linhagens: Homo sapiens-amans amans, Homo sapiens-amans agressans e Homo sapiens-amans arrogans. Estas três linhagens teriam surgido como linhagens culturais das quais o único atual como linhagem biológico-cultural que se conserva é a linhagem Homo sapiens-amans amans. Se não tivesse sido conservado em nossa deriva evolutiva o amar como uma linhagem biológico-cultural, não teria sido conservado o Homo sapiens-amans amans, e teríamos desaparecido. Só conservando o bem-estar psíquico-corporal que se conserva no amar, os seres humanos do presente conservarão o viver.

As outras duas linhagens, se tivessem evoluído como linhagens biológico-culturais, teriam sido extintas, apesar de ainda surgirem com certa freqüência como linhagens culturais transitórias.

A linhagem Homo sapiens-amans agressans ocorre em um conviver que conserva as cegueiras da agressão.

A linhagem Homo sapiens-amans arrogans ocorre em um conviver que conserva as cegueiras da arrogância.


Era psíquica matrística:

Dinâmica emocional fundamental: o amar como um conviver desejado.

Esta é a Era do devir do Homo sapiens-amans amans: a forma fundamental de convivência é a de grupos pequenos que colaboram nas atividades do compartilhar o viver cotidiano unidos na sensualidade, ternura e sexualidade como um âmbito de bem-estar. Este bem-estar psíquico-corporal surge de maneira espontânea, não surge da reflexão e sim de um modo de viver e conviver em coerência com o mundo natural. A atitude cotidiana é a da colaboração no viver cotidiano, em busca do alimento, do cuidado das crianças, uso de instrumentos, enfim, em um modo de viver cultural que abre o espaço para a co-inspiração e que não dá cabida à conservação da dominação e a submissão e onde a agressão é um acontecimento ocasional que não guia o  conviver.

Nesta era vivemos a geração de mundos culturais e o conhecimento dos mundos que se vivem.

Surgem culturas matrísticas, centradas em relações de colaboração e co-inspiração.

Amplia-se a consciência da unidade do existir.

A extinção das linhagens agressans e arrogans se produz pela restrição da consciência da unidade do existir que resulta das cegueiras relacionais que geram os âmbitos emocionais de agressão e arrogância. As linhagens que surgem na expansão da agressão e da onipotência como um viver cotidiano cultural, vão rumo à sua própria extinção porque destroem a si mesmos e o meio biológico que os torna possíveis. Isto teria acontecido com as formas de viver Homo sapiens-amans agressans e Homo sapiens-amans arrogans como linhagens biológico-culturais autodestrutivas quando através da agressão e da arrogância entraram na dinâmica da expansão hegemônica. Estes modos de viver apareceram muitas vezes em eras posteriores durante nossa história patriarcal (Era da apropriação) sob a forma de fanatismos e impérios que geraram sua própria extinção com a dor humana e/ou o dano ambiental que produziram em um viver através das cegueiras que produzem a agressão e a arrogância.


Era psíquica da apropriação:

Dinâmica emocional fundamental: veneração da autoridade.

É a Era do despertar da consciência manipulativa na expansão da habilidade manual e explicativa no fazer e no viver que abrem o sentir ao se apropriar do e dos mundos que vão surgindo no conviver. Perda da confiança nas coerências espontâneas do mundo que se vive e expansão do desejo de controle. Ao surgir a apropriação, vão aparecendo alguns modos de conviver na apropriação e na discriminação, e com a discriminação surgem as culturas centradas em relações de dominação, submissão,  hierarquia, e negação de si mesmo e do outro na autoridade e na obediência.

Linhagens culturais de Homo sapiens-amans agressans e arrogans.

No momento que se perde a confiança nas coerências espontâneas do mundo aparece o medo e a insegurança e a emoção guia nesta era é a desconfiança, o controle e o poder, que buscam o domínio sobre as coisas e sobre Deus.

Acreditando recuperar através do controle e do poder a confiança nas coerências do mundo que se vive.


Era psíquica moderna:

Dinâmica emocional fundamental: domínio da autoridade e a alienação no poder.

É a Era da expansão do saber da ciência e da tecnologia: conhecimento, apropriação e domínio do mundo que se vive porque se pensa e sente que este é dominado.

Vivemos na confiança em que podemos conhecer direta ou indiretamente o em si dos mundos que vivemos, e confiança em que o conhecimento do mundo ou dos mundos que vivemos dará validade universal a nossos argumentos e afirmações cognitivas. Age-se na crença de que o conhecimento gerará bem-estar na humanidade.


Era psíquica pós-moderna:

Dinâmica Fundamental: Domínio do Conhecimento.

É a era da dominação da ciência e da tecnologia: podemos fazer tudo o que imaginamos se operarmos com as coerências operacionais do domínio em que o imaginamos. Somos onipotentes, somos deuses no fazer, nós, seres humanos, somos instrumentos para a realização de nossos desígnios. Vivemos na hegemonia da liderança: apropriação da verdade, fanatismo, alienações ideológicas, na inovação, na manipulação, desonestidade. Vivemos a geração de dor e sofrimento na ‘antroposfera’ e na biosfera.  Também nos movemos em nosso viver na busca da eternidade e prisão na solidão psíquica da alienação da onipotência.


Era psíquica ‘pós-pós-moderna’:

Dinâmica emocional fundamental: Surgimento da reflexão e ação ética conscientes.

É a Era da dor e sofrimento da ‘antroposfera’ e da biosfera que a alienação na onipotência gera abre o espaço para a reflexão e para o surgimento da consciência das alienações ideológicas e tecnológicas, e da dor e sofrimento que geram.

É a era em que surge a responsabilidade ética na ‘antroposfera’ e na biosfera através da ampliação da consciência de que somos nós mesmos quem geramos as dores e sofrimentos que vivemos na ‘antroposfera’ e na biosfera.

Começamos a viver no fim da liderança: abre-se o caminho para a reflexão-ação ética, ressurgimento da honestidade e o desejo de colaborar e co-inspirar.

Surge a consciência e entendimento da matriz biológico-cultural da existência humana que gera, realiza e conserva o humano como gerador do cosmos que vivemos como o âmbito relacional e operacional no que se dá o presente de nosso viver.

Vivemos as seguintes dimensões psíquicas:

Consciência e desejo da reflexão-ação ética.

Consciência de pertencer à ‘antroposfera’ e à biosfera.

Consciência de cuidado e responsabilidade da biosfera e da ‘antroposfera’.

Então, a era moderna é a era do fazer e do conhecer, a era na que se tornam aparentes as capacidades humanas nos âmbitos do fazer e do explicar científico; a era na que os seres humanos se encontram com capacidades tecnológicas que lhes abrem portas de ação antes só imaginadas. A era pós-moderna é a era do entendimento; a era na que percebemos que podemos fazer qualquer coisa que imaginarmos se operarmos com as coerências operacionais do âmbito relacional em que o imaginamos; a era na que percebemos as conseqüências do que fazemos, as não nos comprometemos a agir de acordo com essa consciência. Entretanto, as conseqüências do que fazemos estão aí, podemos vê-las, ouvi-las, tocá-las, senti-las. O fato de não nos omprometermos a agir de acordo com a consciência que temos, por apego a nossas certezas, porque desejamos conservar de maneira consciente e inconsciente a onipotência de acreditar que podemos fazer qualquer coisa que quisermos conservando as coerências operacionais no domínio onde quisermos, ou seja, o apego pelo poder e pela onipotência, leva-nos ao caminho do mal-estar. E é através deste espaço psíquico que começa a era ‘pós-pós-moderna’.

E começa quando percebemos que sabemos o que sabemos que sabemos e que entendemos o que entendemos que entendemos, e ao mesmo tempo percebemos que esse saber que sabemos que sabemos, e esse entender que entendemos que entendemos nos compromete com a ação; a era em que somos conscientes de que se não agirmos de acordo com o que sabemos que sabemos, mentimos a nós mesmos e mentimos a outros, inclusive a nossos filhos: quando se sabe que se sabe não se pode fingir que não se sabe sem estar mentindo.

A era  ‘pós-pós-moderna’ surge como a era da consciência ética em nosso viver e conviver, pois sabemos o que sabemos, de que entendemos o que entendemos, o que nos compromete com a ação. Contudo não nos compromete com qualquer ação,  compromete-nos com uma ação consciente e responsável de que as conseqüências de nossos atos não prejudiquem os outros, a era em que não queremos continuar nos enganando.

Gostaríamos de dizer também que a era  ‘pós-pós-moderna’ ou a era da ética no viver e conviver é a era que gera um espaço operacional-relacional onde nós como seres vivos e seres humanos em particular nos sentimos mais à vontade, mais em casa dado que nossa ontologia constitutiva se orienta a viver e conviver como seres alegres, harmônicos na conservação do bem-estar. É esta a era onde queremos viver em maior coerência com o mundo natural, é a era que nos coloca no centro de nosso ser seres amorosos.

Enquanto agora sabemos que sabemos das conseqüências que nosso fazer tem no âmbito humano e ecológico que surge com nosso fazer, e agimos de acordo com esse saber que sabemos, estamos transitando a era ‘pós-pós-moderna’. Na era  ‘pós-pós-moderna’ estamos sendo mais conscientes do que teríamos que fazer na conservação da ‘antroposfera’ e da biosfera de modo que se gere e conserve nelas o viver humano no bem-estar e em harmonia psíquica e operacional com outros seres vivos através do respeito pela legitimidade de sua existência. Passamos à era  ‘pós-pós-moderna’ quando percebemos que a seriedade, a eficiência, e a criatividade socialmente responsável em qualquer atividade se expandem em uma comunidade na que se vive no mútuo respeito e na autonomia na colaboração. Ao passar à era  ‘pós-pós-moderna’ percebemos ainda que isto acontece em uma comunidade humana quando seus membros sentem que o que fazem tem sentido porque eles lhe dão sentido com seu vivê-lo, essa comunidade é uma comunidade ética.

Mas, como agir? Qual é a conduta adequada para gerar esse conviver na espontaneidade de nosso sentir? Qual é a conduta adequada para realizar o trânsito para a era  ‘pós-pós-moderna’ e conservar a espontaneidade da responsabilidade social cotidiana? O que deve ocorrer na alma do quefazer das atividades produtivas? O que deve ocorrer na alma da atividade empresarial que abriu a possibilidade para esta mudança de era com tanta dor e sofrimento na ‘antroposfera’ e na biosfera, para que esta mudança de fato aconteça? Sabemos que tem que acontecer, e sabemos também que em geral se no tivermos de forma imediata um proceder adequado à mão para fazer o que desejamos fazer, sempre poderemos conceber e realizar um tal proceder, se quisermos.

Isto é, sabemos ao passar à era  ‘pós-pós-moderna’ que não é falta de imaginação ou de capacidade tecnológica o que nos impediria criar uma atividade adequada para gerar o conviver no bem-estar que queremos, seja qual for a circunstância, mas sim que é o não desejar fazê-lo.

Por que o Fim da liderança? [10]

Vivemos um presente no qual distinguimos nas pessoas desejos de bem-estar, alegria e harmonia com o mundo natural. Ao mesmo tempo em que distinguimos muita dor e sofrimento em toda a humanidade. Riquezas e misérias que nos levam a nos perguntar como estamos fazendo nosso viver que no momento de mais potencial criativo e capacidade de ação de nossa história, geramos tanta dor em muitos no meio do bem-estar de poucos. Convidamos a olhar, a saber olhar nosso presente, e façamos isso sem temor e sem pretender ocultar o que vemos. O que vemos?

Sabemos que com nosso viver geramos continuamente o mundo que vivemos. E que o mundo que geramos em nosso viver modifica recursivamente nosso viver e nosso conviver, constituindo uma ‘antroposfera’ que como trama ecológica do conviver humano surge como parte integral da biosfera, em uma dinâmica recursiva que não se detém nem se deterá, salvo com nossa extinção. Nestas circunstâncias se olharmos o presente que vivemos poderemos ver o surgir da era  ‘pós-pós-moderna’ na crescente presença em nosso conviver cotidiano de reflexões e considerações ecológicas e éticas. Reflexões e considerações ecológicas e éticas que surgem em uma mudança de consciência através do saber que sabemos que o bem-estar na ‘antroposfera’ só pode surgir e ser conservado como um ato cotidiano individual de criatividade em nosso conviver.

A atividade empresarial não é nem pode existir alheia a esta mudança de consciência, pois esta surge, em boa medida, como resultado das mudanças no habitar humano que sua presença traz consigo, na ‘‘antroposfera’’. De fato, atualmente nenhuma  comunidade humana é possível sem as atividades produtivas empresariais tanto porque estas são agora parte intrínseca do âmbito ecológico da ‘antroposfera’ que vivemos, como pela transformação global da própria biosfera que foi surgindo como resultado sistêmico [11] da conservação de seu operar. Nesta transformação da ‘antroposfera’ e da biosfera a magnitude da presença da atividade empresarial e a magnitude das conseqüências dessa atividade em nosso viver e conviver humano torna necessário refletir sobre o caráter dessa atividade como um aspecto de nosso conviver cotidiano.

A atividade empresarial sob a noção de livre empresa e livre mercado é vista como uma atividade que, por surgir de uma iniciativa privada, pode ser chamada privada, ainda que em um sentido estrito sempre tem conseqüências públicas na comunidade em que surge, que a torna possível, e que a sustenta. Entretanto, mesmo que qualquer atividade empresarial como uma atividade que ocorre no fluir do viver e conviver de uma comunidade humana participa ao mesmo tempo destas duas dimensões relacionais (privadas e públicas), neste momento fazemos notar a ênfase que no presente é posta na separação do privado e do público como se se tratasse de relações opostas e excludentes.

Assim, acontece que agora, nos encontramos em um presente histórico no qual se espera que a criatividade dos membros de uma empresa esteja orientada mais ao lucro que ao bem-estar das comunidades internas e externas que a tornam possível. E mais, isto ocorre sem que se reconheça que, na transformação da ‘antroposfera’ e da biosfera que as empresas geram, a tarefa central das empresas é agora essencialmente de serviço público. E sem ver que a orientação ao lucro constitui um curso que arrasta a ‘antroposfera’ ao descalabro ecológico e humano. Sabemos deste último dado há muito tempo, mas só há pouco tempo estamos aceitando que sabemos que o sabemos.

A satisfação dos vícios pelo lucro e pelo poder da era pós-moderna requer que os planejamentos que fazemos dêem certo. E para que isso aconteça se requer impecabilidade na realização do planejado. E para que o planejado aconteça se requer das pessoas que participam de sua realização que não cometam erros, não mudem de opinião, não tenham iniciativas que não foram consideradas; em suma se requer que sejam conduzidas como robôs. O maravilhoso dos robôs é que, salvo erro em sua construção, acidente relacional ou erro em seu uso, comportam-se de forma impecável e previsível conforme seu design.

Os seres vivos em geral, e os seres humanos em particular, não são assim, não são robôs. Os seres humanos querem pensar, refletir, mudar de opinião, ter iniciativa, participar do que fazem. Querem ser vistos e escutados como seres inteligentes e criativos. De fato, quando nos encontramos em um âmbito profissional, no qual se quer operar, na certeza de que serão obtidos os resultados desejados. Conforme especificados em algum projeto particular, procura-se fazer qualquer coisa para assegurar que aqueles que participarem da realização desse projeto ajam com plena precisão, conforme o que se considera que seja o procedimento adequado para obter esses resultados. Isto é, queremos projetar a conduta de nossos “colaboradores” e empregados com prêmios, castigos, e argumentos racionais de modo que se comportem conforme nossas especificações. Enfim, queremos que eles se comportem como robôs multidimensionais em quem podemos confiar.

Reconheçamos ou não, esta é a tarefa da liderança. Contudo a efetividade de uma liderança, qualquer que seja sua denominação (amigo, acolhedor), sempre dura pouco tempo porque as pessoas querem ser partícipes criativos, E se não forem logo se cansam, aborrecem-se, e querem outra coisa. A liderança requer que os liderados abandonem sua própria autonomia reflexiva e se deixem guiar por outro confiando ou se submetendo a suas diretrizes ou desejos, seja por se sentirem inspirados, o por temor a perder alguma coisa sem acesso à queixa ou à pergunta reflexiva. Entretanto, a inspiração nas atividades de um grupo não dura na ausência de participação criativa, e tanto as queixas como as perguntas reflexivas não podem ser detidas  indefinidamente sem que surja frustração, raiva ou apatia.

Quando se concebe uma atividade que requer um procedimento particular que pode ser cumprido só mediante a conduta acertada de quem o realiza, é a natureza da atividade e da conduta acertada que o realiza o que define a ordem e a precisão do que se faz, não um líder. A história cultural da era pós-moderna nos mostra que se se quer obter a conduta acertada mediante o operar de uma liderança, cedo ou tarde as exigências e restrição reflexiva que isto implica levam à queixa, à apatia e à dor: a liderança deixa de ser efetiva, pois as pessoas querem ser responsáveis pelo que fazem. Mas esta história nos mostra, também, que é o renascer da reflexão e da ação éticas a partir da dor e do sofrimento da era pós-moderna que nos leva à era ‘pós-pós-moderna’. Ao trazer consigo a presença integral do ser humano, abre a passagem para a colaboração, através da autonomia reflexiva e de ação na co-inspiração de qualquer projeto comum. É a isto que nos referimos quando falamos do fim da liderança no nascimento da colaboração na co-inspiração.

Propomos reconhecer, dito de outro modo, que no presente vivemos a mudança de consciência que leva ao fim da liderança e ao começo intencional da gerência co-inspirativa. A colaboração ocorre quando o que se faz com os outros se faz com prazer de fazê-lo, e se vive, portanto, através da autonomia reflexiva e da liberdade de ação. E através da colaboração com a co-inspiração ou, o se inspirar com outros, ante uma atividade em um espaço psíquico de respeito, confiança, que nos dá segurança e expande nosso fazer inteligente e criativo. Esta co-inspiração ocorre quando através do prazer da colaboração se concebe e gera um projeto que surge em comum porque todos os que participam dele agem vivendo o âmbito de coerências operacionais de sua realização como um espaço de ação e reflexão que lhes entrega respeito, autonomia, responsabilidade e liberdade reflexiva, qualquer que seja sua atividade. A colaboração e a co-inspiração são espaços psíquicos que constituem âmbitos de convivência no fazer e no refletir onde a seriedade, a responsabilidade, a eficiência e a qualidade do que se faz, seja sozinho ou com outros, surge da consciência de que cada um sabe que faz o que faz porque quer fazer, e sabe que o que faz tem sentido para ele ou ela porque participou de alguma maneira em sua gestação. Enfim, a colaboração e a co-inspiração não são possíveis na liderança (qualquer que seja sua denominação), porque o espaço psíquico deste implica sempre a negação de si mesmo na perda da autonomia reflexiva e de ação.

A liderança, qualquer que seja seu começo, ocorre na coordenação da obediência e da submissão; por isso o transitório que resulta sua efetividade. Ao se restringir a autonomia de reflexão e de ação no espaço psíquico que surge com a liderança, restringem-se a criatividade e os desejos de participar, pois se restringe a inspiração. Por isto, ao se abrir o espaço da convivência ética na atividade empresarial com a emergência da era ‘pós-pós-moderna’, a liderança desaparece. E ao desaparecer a liderança, abre-se o espaço psíquico em que é possível criar o que estamos chamando a Gerência Co-inspirativa. Como a forma de guiar a coordenação das atividades e reflexões em qualquer campo produtivo, com conversações de coordenação dos desejos e a vontade de fazer o que se sabe fazer nesse campo, e de estar disposto a aprender o que não se sabe. A gerência co-inspirativa se funda no mútuo respeito e na consciência de que as pessoas através do respeito por si mesmas querem tornar responsável e seriamente o que sabem fazer, e querem aprender também responsável e seriamente o que não sabem fazer porque através do respeito por si mesmas querem cumprir seus compromissos.

Todos nós preferimos colaborar a obedecer; todos nós preferimos ter presença no que fazemos a ser meros peões profissionais; todos nós preferimos ser autônomos e reflexivos em nosso quefazer através do entendimento de sua natureza e seu significado, e assim ser pessoas participantes em um projeto comum, a ser subordinados robóticos. Todos nós desejamos que nosso fazer seja distinguido como uma atividade impecável. A liderança se acaba porque ao negar a autonomia reflexiva das pessoas nega os fundamentos da conduta responsável, e logo fracassa em sua tentativa de obter qualidade e eficiência na atividade acertada de qualquer âmbito produtivo. Assim seu fim ocorre através da alma dos “liderados” ante sua urgência psíquica e operacional por recuperar a reflexão e a ação éticas como aspectos centrais da convivência profissional. Com o fim da liderança e o começo da gerência co-inspirativa, recupera-se a seriedade na atividade através da consciência de que se sabe que se sabe o que se sabe. E na tranqüilidade de que um conviver no mútuo respeito permite dizer “não sei” sem medo de um castigo, porque se sabe que o que não se sabe pode ser aprendido e se quer aprender.

Na gerência co-inspirativa se sabe que os erros não são mentiras, e se sabe também que seu reconhecimento abre os espaços reflexivos que levam a mudar as circunstâncias que deram origem aos erros. Em um mundo mutante haverá erros, e haverá conhecimentos que ficarão obsoletos, mas a conduta inteligente, e a contínua abertura à reflexão que corrige os erros e expande a conduta criativa oportuna que o mútuo respeito traz consigo, nunca ficarão obsoletos. Quando em um mundo que se vive como um presente em contínua mudança, convivemos sem medo do erro ou da equivocação, em um espaço psíquico aberto ao mesmo tempo à reflexão e às conversações colaborativas, vivemos nossa ‘sensorialidade’ mutante na serenidade e na segurança, sem ansiedades ou angústias. Isto é, vivemos no espaço emocional de harmonia psíquica e corporal que chamamos bem-estar. E isto não é trivial, pois as emoções como domínios relacionais são o fundamento de toda nossa atividade.

Os três pilares da conduta social responsável espontânea.

Nós, seres vivos, deslizamo-nos no viver em uma contínua deriva estrutural e relacional em um curso que se constitui instante a instante através da conservação da ‘sensorialidade’ do bem-estar no fluir de nosso fazer e nosso sentir relacional, ao fazer em cada instante o que queremos fazer. É por isto que o curso que segue nosso viver não surge guiado pela razão e sim por nossas emoções, nossas preferências, nossos vícios, nossos desejos… nossa vontade, que são, além disso, o que de fato fundamenta nossa escolha das razões ou motivos com que justificamos o que fazemos em qualquer domínio de nosso viver, quando pensamos que temos que justificá-lo. E é por isto mesmo que, se queremos compreender as alegrias, as dores, as harmonias e os conflitos de nosso presente, devemos olhar o curso do fluir do emocionar que guiou o devir de nosso viver ao longo de nossa história. Que resultou no modo que estamos vivendo o que estamos vivendo no presente que agora vivemos.

Isto é, o querer obter o que se deseja através do vício pelo lucro, pelo poder, ou por ambos, o que guiou momento a momento nossa busca de saber e a orientação do que fazemos com esse saber na era pós-moderna. Ou, dito de um modo mais direto, é o que a atividade empresarial e produtiva na era pós-moderna tenha se centralizado no apego ao lucro e ao poder como guias do uso do saber que os torna possíveis, o que gerou as imensas dores, sofrimentos e iniqüidades que vivemos atualmente na ‘antroposfera’ e na biosfera. Mais ainda, é precisamente porque são nossas emoções que guiam o curso de nosso viver, que agora é a consciência da dor e do sofrimento que geramos, através dos apegos ao lucro e ao poder, na era pós-moderna, o que nos projeta para a era ‘pós-pós-moderna’. E nos leva ao ressurgimento da consciência ética no viver cotidiano que inicia o fim da liderança.

Isto é, é a mudança de substrato epistemológico que ocorre em nosso viver relacional quando nos tornamos conscientes de que sabemos que sabemos que a dor e o sofrimento da era pós-moderna foram gerados por nós mesmos com nossos apegos ao lucro e ao poder, o que faz surgir a era ‘pós-pós-moderna’. E é esta mudança de consciência o que torna possível que nós, seres humanos, reapareçamos ante nós mesmos percebendo que somos seres biologicamente amorosos, e de que somos desde nossas origens como Homo sapiens-amans amans há mais de três milhões de anos.

Como dissemos acima, “a era ‘pós-pós-moderna’ é a era onde somos conscientes de que se não agirmos de acordo com o que sabemos que sabemos, mentimos a nós mesmos, ao mesmo tempo em que mentimos a outros, inclusive a nossos filhos e aos filhos de nossos filhos”. Sabemos da dor e sofrimento que geramos no vício pela onipotência da era pós-moderna e não queremos fingir mais que não o sabemos.

Quando se sabe que se sabe, não se pode fingir que não se sabe. E sabe-se que mente quando se finge que não se sabe.

O saber que sabemos que não queremos seguir imersos na psique da onipotência da era pós-moderna constitui o estado de consciência no que “percebo que já não sou nem somos cegos ao suceder desta era”. E este perceber é o que gera a mudança de consciência dando origem ao surgimento da era  ‘pós-pós-moderna’ e torna possível que nos eduquemos em nosso viver cotidiano no operar ético que se fundamenta no que chamamos os três pilares da conduta ética espontânea ou os três pilares da conduta social responsável. Estes três pilares são o saber, o compreender, e o ter à mão uma ação adequada para a circunstância que se vive, e constituem o fundamento de onde surge nosso agir ético espontâneo nas distintas encruzilhadas relacionais em que temos que escolher o que fazer no âmbito de nossa convivência social.

O saber se refere ao perceber a natureza da encruzilhada social e ecológica que se vive e das ações entre as quais se deve escolher; o compreender se refere ao perceber as distintas conseqüências sociais e ecológicas (visão sistêmica) que teriam na ‘antroposfera’ e na biosfera as distintas ações entre as quais se deve escolher; e o ter uma ação adequada à mão se refere a dispor dos meios (tê-los à mão) adequados para realizar as ações escolhidas.

Quando não se sabe há cegueira e não há consciência de que se requer agir.

Quando não se compreende de que se trata o que se sabe não há possibilidade de conceber uma ação adequada para a encruzilhada social e ecológica que se vive.

E quando não há ação adequada à mão, quando não se dispõe de uma atividade oportuna, há paralisia, depressão, abandono, raiva e indignação.

Se se sabe qual é a encruzilhada relacional social e ecológica que se vive na ‘antroposfera’. E se sabe quais são as ações possíveis, se são compreendidas as possíveis conseqüências na ‘antroposfera’ e na biosfera de escolher uma ou outra dessas ações possíveis. E se se tem a ação adequada (ética) à mão, não é possível não escolher a conduta social responsável sem agir de má fé.

Ao surgir a era ‘pós-pós-moderna’, a compreensão do operar dos três pilares da conduta social responsável faz destes uma oportunidade reflexiva para pôr como o fundamento de qualquer atividade empresarial a inspiração ética, primeiro de maneira intencional e depois de maneira espontânea no mútuo respeito de uma convivência humana no bem-estar. Em outras palavras, o novo olhar e sentir que emerge com o substrato epistemológico que recupera a visão ética no viver cotidiano. E traz consigo o surgimento da gerência co-inspirativa junto com o fim da liderança ao passar à era ‘pós-pós-moderna’, implica pôr como elemento reflexivo e operacional básico em todas as atividades do âmbito produtivo a reflexão e a ação ética. Já não será o primário na atividade empresarial as vantagens econômicas como se estas fossem um bem em si, mas que agora o centro será o bem-estar em todas as dimensões do conviver social humano que a contém e torna possível.

Dissemos que, no começo da era ‘pós-pós-moderna’, os seres humanos se encontram criadores de uma atividade produtiva empresarial que foi e ainda é geradora de uma ‘antroposfera’ destrutiva das condições que tornam possível a existência e conservação da biosfera. Biosfera como um habitar no qual os seres humanos podem viver em coerência sistêmica com os outros seres vivos da Terra no bem-estar ecológico e ético.

Ao mesmo tempo dissemos que ao expandir nosso olhar vemos o contexto em que ocorre nosso viver ao mesmo tempo em que nossa participação na geração desse ocorrer. Ocorrer que não gostamos.

E mais, nesse ver, vemos a dinâmica recursiva das conseqüências do que fazemos ou não fazemos. E ao ver que somos geradores dos mundos que vivemos através de nosso fazer (e não fazer) vemos também as conseqüências que isto tem em todas as dimensões do habitar dos outros seres vivos com quem compartilhamos e co-criamos a biosfera que nos torna possíveis. Enfim, ao expandir nosso olhar vemos que somos responsáveis pelo surgimento: de tudo o que é bom e de tudo o que é mau em nosso viver. Ao sermos geradores através do que fazemos, seja com nossas mãos, com nosso pensar, com nosso teorizar e com nosso explicar, de todas as dimensões de todos os mundos que vivemos. Não importam as circunstâncias em que vivemos nosso viver, os seres humanos são criadores, e por isso são responsáveis. Tanto pelo que fazem em sua vida doméstica como nos múltiplos mundos que vivem através de seu fazer filosofia, arte, religião, ciência, ou tecnologia como distintos modos de habitar humano.

Contudo, neste mesmo olhar percebemos também que nossas atividades produtivas empresariais não têm por que ser destrutivas das condições que tornam possível nosso habitar como um habitar ético e socialmente responsável. Se não queremos que seja assim, pois possuímos todas as capacidades e os conhecimentos para fazer tudo o que fazemos gerando uma ‘antroposfera’ em equidade e bem-estar no mútuo respeito abandonando nossos apegos ao lucro e ao poder.

Com efeito, como também dissemos no início, “vivemos um momento em nosso devir histórico no que nos encontramos podendo fazer tudo o que imaginarmos se operarmos com as coerências operacionais do âmbito relacional e operacional em que o imaginamos”. E é talvez por isto mesmo que também agora ao perceber nossa responsabilidade total na contínua transformação do habitar que geramos, nós nos perguntamos “o que fazer?” e nos perguntamos “o que fazer?” porque a dor e o sofrimento que geramos em nosso apego ao lucro e ao poder é tão grande que se manifesta recursivamente também no viver de nossos filhos, de nossos amigos e em nossa dignidade, tanto que começamos a perceber que não queremos mentir nem nos mentir mais porque já não podemos continuar fingindo que não sabemos que sabemos o que sabemos. E é neste momento, no momento em que percebemos  que já não queremos nos mentir mais, quando começamos a passar à era  ‘pós-pós-moderna’ ao nos perguntar “o que fazer para sair da armadilha que nós mesmos nos criamos?”; “como sair de um modo de conviver no que estamos dispostos a aceitar qualquer coisa sempre que conservemos nossos apegos ao lucro e ao poder?”

Sabemos que sabemos que podemos fazer qualquer coisa que queremos fazer se quisermos fazer; e sabemos que sabemos que se queremos fazer podemos entrar na busca ou no projeto intencional do fazer adequado ao que nosso saber e nosso entender e compreender nos indicam. Isto é, se queremos podemos conceber um operar de reflexão e ação ética em nossa atividade empresarial que nos permita sair da armadilha autodestrutiva que nós mesmos geramos na era pós-moderna através do apego à onipotência. Se quisermos podemos criar juntos um conviver no que seja conservado através do respeito por nós mesmos o respeito pela diversidade, pela estética e pelo prazer da amizade na co-inspiração da criação de um conviver no bem-estar sem buscar a perfeição.

Esta é a grande oportunidade da atividade empresarial na era ‘pós-pós-moderna’. O dinheiro como energia, e o conhecimento como capacidade de ação, são dons divinos e não demoníacos se não entrarmos nas tentações do apego à onipotência.

Se nos encontramos no apego à onipotência, toda nossa criatividade, toda nossa inovação, fluirá em torno da conservação do poder a qualquer preço. E nossa empresa ficará cega a tudo que não contribuir com essa ambição. A ética, as considerações sobre dano ecológico, da saúde e da estética do viver serão dispensáveis. A fraude, as drogas, a contaminação, assim como a mentira, mesmo que dissermos o contrário, serão aceitáveis. Enfim, tudo o que não contribuir diretamente para o nosso apego à onipotência será caro e difícil, ou diremos que não existem nem os conhecimentos nem as tecnologias necessárias, mesmo sabendo que temos capacidade para fazer qualquer coisa se quisermos. Se nos encontramos no apego pelo poder, tudo o que não parecer conduzir à submissão de outros será debilidade, assim toda nossa criatividade, toda nossa inovação fluirá em torno da conservação do poder a qualquer custo, e nossa vida ficará cega a tudo o que não contribuir para o aumento de nosso poder; a ética, as considerações sobre dano ecológico ou de saúde, a dignidade, a vida humana, serão dispensáveis, a fraude, as drogas, a vingança, a manipulação e a mentira, mesmo que dissermos o contrário, serão oportunidades aceitáveis para satisfazer nossa busca de onipotência. Enfim, tudo o que não nos levar à onipotência e ao poder será indesejável, difícil e ameaçador, e criaremos teorias que nos justificando nos desejos de onipotência e de poder nos ceguem ante o dano que geramos através desses apegos.

Ao sair do apego à onipotência, da era pós-moderna, e ao se iniciar com ele a era ‘pós-pós-moderna’, percebemos que somos nós mesmos quem geramos a dor e o sofrimento que vivemos na ‘antroposfera’ e na biosfera. E como em um despertar nos encontramos abandonando os apegos ao lucro e ao poder no emergir de nossa consciência ética em nosso conviver cotidiano.

Como acontece?

Este surgir de nossa consciência ética é possível porque somos biologicamente seres a quem comove a dor e o sofrimento de outros porque vêem a si mesmos neles, a menos que sem saber neguemos validade a esse ver movidos por um argumento racional que pretende justificar algum apego. As eras, moderna, pós-moderna e ‘pós-pós-moderna’, de que falamos são, como distintos momentos históricos do conviver humano, distintos espaços psíquicos, distintos modos de sentir e agir relacional, distintos substratos epistemológicos de onde vivemos nosso viver.

No fluir de nosso devir histórico entramos e saímos dos distintos espaços psíquicos que vivemos  através de uma mudança de consciência que emerge a partir de uma mudança emocional que como uma mudança de entendimento e compreensão do viver que vivemos nos avassala e abre ou fecha nosso olhar reflexivo no âmbito da conduta ética. Mesmo quando as mudanças de consciência que vivemos nos acontecem de maneira espontânea e não intencional, é possível facilitar aqueles que ampliam nossa consciência ética com um processo reflexivo. Que nos permita perceber que somos nós mesmos os forjadores da dor e sofrimento que geramos a outros e a nós mesmos no apego à onipotência da era pós-moderna, e que, portanto podemos sair dessa armadilha psíquica que nos leva à nossa própria destruição.

O que fazer se estamos habituados a exigir e a obedecer, a cair na apatia ou na queixa da não participação, e a mentir por causa do medo de ser castigados?

Falamos do apego à onipotência e ao poder como dimensões emocionais centrais da era pós-moderna, e fizemos isso fazendo referência principalmente à atividade produtiva empresarial, porque esta atividade se converteu em uma dinâmica transformadora e conservadora enorme que se tornou central realização dos processos da ‘antroposfera’, e através desta, da biosfera. Isto, entretanto, não quer dizer que a onipotência e o poder sejam apegos constitutivos da atividade produtiva empresarial, não são. Esses são apegos próprios da cultura patriarcal-matriarcal que atualmente se estendeu por todos os continentes desde sua origem há uns quinze mil anos atrás na Ásia Central. Nossos meninos e meninas aprendem conosco, os adultos, quem como membros de nossa cultura patriarcal-matriarcal os praticamos em todos os aspectos de nosso conviver, e em particular nos âmbitos produtivos. Este último é assim porque na cultura patriarcal-matriarcal se pensa que a única coisa que pode assegurar ordem, concerto e eficiência em uma atividade que implica a participação de muitas pessoas é a autoridade (liderança) e a obediência.

Mas agora sabemos que isto não acontece. A liderança não gera a ordem, o concerto, a qualidade e a eficiência que promete, e se por um certo tempo parecesse que o faz, não é pela liderança e sim que como resultados das oportunidades acessórias que se abrem apesar dele para que surjam relações de amizade e com elas o desejo genuíno de colaborar. Enfim, também sucede que surgem autoridades secundárias que sob a proteção consciente ou inconsciente de uma autoridade maior obtêm o que parece ser maior efetividade através da manipulação do medo. Ninguém gosta de obedecer, ninguém gosta de ser negado.

Quem gosta de agir de maneira irresponsável perante um acordo adotado com honestidade em um domínio de mútuo respeito? A negação que implica a obediência gera ressentimento e apatia. Como fazer?

A história dos seres vivos em geral, e dos seres humanos em particular, transcorreu e transcorre como um devir que segue primariamente um curso inconsciente que se constitui instante a instante através da ‘sensorialidade’ que conserva o viver do organismo como um estar em cada instante conforme com o viver psíquico e fisiológico que se vive nesse instante. Ao falar de bem-estar conotamos esse sentir de conformidade relacional e de harmonia sensorial que um organismo vive de maneira inconsciente ou consciente no fluir de seu viver em qualquer circunstância de conservação de seu viver. Quando o organismo sente que está perdendo essa harmonia sensorial, sua dinâmica sensorial e motora muda para uma dinâmica conservadora e recuperadora dessa harmonia sensorial. Isto é, vivemos a ‘sensorialidade’ do bem-estar como um equilibrista vive a ‘sensorialidade’ do equilíbrio, movendo-se de maneira consciente ou inconsciente para recuperá-lo quando sente que o perde. Do mesmo modo como o equilibrista conserva a ‘sensorialidade’ do equilíbrio mudando sua ‘corporalidade’ e sua relação com seu entorno mutante enquanto caminha pela corda bamba, o ser vivo conserva a ‘sensorialidade’ do bem-estar mudando sua ‘corporalidade’ e sua relação com seu entorno mutante enquanto realiza seu viver, qualquer que seja este. Um organismo conserva o bem-estar em seu viver como uma relação invariante de congruência operacional com seu nicho ou circunstância, enquanto a forma em que essa relação se realiza muda continuamente no curso de seu viver. Isto ocorre do mesmo modo em que um equilibrista conserva seu equilíbrio como uma relação invariante de congruência operacional com sua circunstância enquanto sua forma corporal muda continuamente ao caminhar sem cair sobre a corda bamba.

Cada ser vivo vive a realização de seu viver como um ocorrer de mudanças estruturais e relacionais que seguem um curso definido momento a momento através da conservação do bem-estar na realização de seu viver. A conservação do bem-estar define em cada instante a orientação relacional e operacional que segue do viver de um ser vivo. As distintas classes de seres vivos vivem de maneiras diferentes a conservação básica do bem-estar conforme for seu modo de viver.

Assim, em nosso caso, o fluir de nosso viver como seres humanos inclui nosso operar em redes de conversações de ação e reflexão. Nas quais podemos olhar nossos sentires e modular recursivamente instante a instante a orientação que segue nosso viver na conservação de nosso bem-estar, dependendo de como nos sentimos com nosso sentir em cada instante [12]. Isto é, é através da contínua modulação de nossos sentires que ocorre instante a instante como um aspecto central do curso de nosso viver em conversações de reflexão e ação, que a forma relacional do que constitui nosso bem-estar muda em cada instante conforme o que sentimos, pensamos e desejamos em relação aos mundos que geramos com nosso viver.

Disto resulta que sempre nos deslizamos em nosso viver na conservação da sensorialidade do que vivemos como nosso bem-estar mesmo quando vivamos nosso presente com dor e como algo indesejável. Sempre fazemos em cada instante o que sentimos ser o fazer que conserve nosso bem-estar nesse instante. De fato a mudança de configuração dos sentires que constituem o bem-estar de um organismo muda com o fluir do viver em todos os seres vivos com ou sem ‘linguagear’ como resultado de sua contínua mudança estrutural no curso de sua epigênese. O peculiar humano é que em nós nossa epigênese ocorre em redes de conversações que constituem a ‘antroposfera’ como o espaço relacional e inter-relacional no que se conserva nosso viver e conviver na conservação de nosso acoplamento estrutural na biosfera [13].


Enfim, são nossos fundamentos biológicos no fluir de nosso viver na conservação do bem-estar os que nos oferecem o caminho fora da armadilha dos apegos da cultura patriarcal matriarcal através do próprio centro da atividade produtiva empresarial. Isto ocorre quando o olhar reflexivo que nos abre à compreensão da dor que geramos através do apego pela onipotência de nossa atividade empresarial patriarcal-matriarcal desloca nosso sentir e a configuração relacional da conservação do bem-estar em nosso conviver, levando-nos a agir através da nova consciência e postura epistemológica que essa compreensão implica. É a isto ao que nos referimos ao mostrar o fim da liderança e propor a gerência co-inspirativa em troca como a forma de pôr a reflexão e ação ética como fundamentos de tudo o que fazemos na ‘antroposfera’.


O que chamamos de gerência co-inspirativa é a arte e ciência do escutar, do ver, e do convidar a agir através do saber e compreender que somos e como somos geradores dos mundos que vivemos, conscientes de que nossos saberes são apenas instrumentos para fazer o que queremos fazer. Os seres humanos gostam de colaborar. Gostam de participar. Gostam de fazer bem o que fazem. Gostam de cumprir seus acordos. Gostam de ter presença no que fazem. Todos nós sabemos como experiência de nosso próprio viver, sós ou com outros, que o ser visto, o ser escutado, o participar em um conviver fundado na confiança mútua, isto é, no amar, expande nossa conduta criativa, expande nossa conduta inteligente, expande nosso ver, nosso ouvir, e expande o desejo de ser impecável na qualidade do que fazemos, em qualquer domínio. E não só sabemos isso, como queremos viver assim porque nos faz bem em todas as dimensões de nosso viver.

A história dos seres vivos transcorreu em um devir de contínua mudança em torno da conservação do viver. Por que não poderíamos nós, os seres humanos, gerar uma história cultural de contínua mudança em torno da conservação do bem-estar no respeito mútuo e a co-inspiração reflexiva que leva a conservar esse conviver e a corrigir os erros que nos afastam dele em todas as redes de conversações que gerarmos?

Vivemos gerando continuamente uma ‘antroposfera’ mutante que surge com nossos fazeres cotidianos em redes de conversações. Tudo o que fazemos, como seres vivos humanos, fazemos em redes de conversações, domésticas, tecnológicas, científicas, filosóficas, artísticas, de colheita ou de cultivo de alimentos,… e fazemos isso como os castores, as formigas fazem… ou qualquer ser vivo em um curso evolutivo gerador de diversidades em torno da conservação do viver.

O único peculiar de nosso fazer é que o fazemos como um fazer humano em redes de conversações sendo conscientes ou com a possibilidade de ser conscientes do que fazemos. Então, por que no fazer o que fazemos, em uma co-inspiração recursiva, em torno da conservação do bem-estar de um conviver no mútuo respeito, onde se tem presença e participação, através da realização cotidiana desse projeto comum? Por que não decidimos operar com nossas empresas pondo no centro de nossa atividade a reflexão e ação ética conscientes dos três pilares da conduta social responsável?

Difícil, caro? Tememos perder privilégios, riquezas, vantagens que satisfazem nossa sede de onipotência? Sim, mas sabemos que sabemos que geramos dano e sofrimento em nossa ‘antroposfera’. E sabemos que sabemos que vivemos um presente histórico no qual podemos fazer qualquer coisa que quisermos fazer se o quisermos fazer. Inclusive sabemos que podemos ser empresários éticos capazes de agir com consciência social.

Que teoria, que justificativa racional nos detém e nos leva a não querer colocar no centro de todo nosso fazer a reflexão e ação ética como um aspecto natural de nosso conviver?

Como queremos ser recordados por nossos filhos, filhas e netos ou netas? Como queremos ser recordados por nossos concidadãos?

Postscriptum

Nós no Instituto Matríztico pensamos que: se aceitarmos este convite reflexivo que aqui compartilhamos, junto com Rodrigo da Rocha Loures, estaremos colaborando com a conservação de um viver humano que como tal nos possibilita viver e conviver no bem-estar que surge de qualquer atividade quando essa atividade é vivida em total harmonia com o mundo que trazemos à mão em nosso viver. Mais ainda, estaremos abertos à transformação de todos nossos espaços de convivência. Sem que dessa transformação surjam modos de viver que conservem a dor ou o sofrimento através da negação da legitimidade de nós mesmos, dos outros ou do outro.

Nesta tarefa estamos, como Instituto Matríztico, convidando junto a FIEP e UNINDUS aqueles que quiserem colaborar com a ampliação do olhar que surge do entendimento da origem, conservação e transformação do humano, que nós conotamos quando falamos de biologia-cultural.

O convite para ver que todo bem-estar humano é de origem cultural é um convite que só podemos aceitar através de nosso viver e conviver no mundo que trazemos à mão. Se considerarmos que somos responsáveis pelo mundo que vivemos e convivemos com os outros e se vivermos esse perceber como um viver ético que surge naturalmente ao viver no entendimento que a biologia-cultural nos mostra.





1 Recursividade, recursão: Palavras que se referem ao ocorrer de um processo quando a repetição de seu ocorrer se aplica sobre o resultado de seu ocorrer anterior. Em economia o juro composto é um caso de recursão no cômputo dos juros de um investimento.

2 Para ver os fundamentos de esta explicação remeter-se a: Maturana, H. R. Autopoiesis: Reproduction, Heredity and Evolution. En: Autopoiesis, dissipative structures and spontaneous social order, pp. 48-80. Milan Zeleny (ed.) Westview Press, Boulder. 1981. E a: Maturana, H.R., J. Mpodozis. Origen de las Especies por Medio de la Deriva Natural, Publicacion Ocasional N. 46. Museu Nacional de História Natural. Santiago, Chile.2000.
(revista chilena de História Natural. 73: 261-310.)

3 Ximena Dávila disponibilzou a distinção do sistêmico sistêmico para explicar a natureza recursiva dos processos sistêmicos e da linearização em que caiu o assim chamado pensamento sistêmico.


4 Ver: Maturana H. e Dávila X. Leyes Sistémicas y Metasistémicas. Em; Habitar Humano: en Seis Ensayos de Biología-Cultural. Coleção Instituto Matríztico-JC Sáez Editor. Santiago de Chile. 2008. (Escrito em 2002-2006)

5 A ‘autopoiese ‘ é a dinâmica de autoprodução celular que constitui a organização fundamental dos sistemas vivos. Ao respeito ver: Maturana, H. R. The Organization of the living: A theory of the living organization. The Int. J. of Man-Machine Studies 7: 313-332, 1975. E; Maturana, H. R., Varela, F. Autopoietic Systems. B. C. L. Report 9.4; 107 pp. Biological Computer Laboratory, Department of Electrical Engineering, University of Illinois. 1975.

6 Usualmente pensamos as emoções como estados íntimos e nos referimos a elas como sentimentos. Mas o que um observador distingue quando distingue emoções são tipos ou domínios de condutas relacionais. As emoções são o fundamento de todo afazer.

7 A linguagem não é um âmbito abstrato de significados, e sim um âmbito operacional cuja dinâmica é a da coordenação recursiva de condutas consensuais, que de fato têm a concretude o fazer e dos mundos que geramos ao existir fluindo no ‘linguagear’ que
momento a momento se dá entrelaçado com configurações emocionais nas matrizes culturais em que existimos.

8 Reflexões tomadas do texto inédito: Proyecto País, do Instituto Matríztico. Apresentado à Presidente Michelle Bachellet no ano de 2006. De: Patricio García, Ximena Dávila, Humberto Maturana, Cristóbal Gaggero e Ignacio Muñoz.

10 Estas reflexões aparecem com detalhe no ensaio de Dávila X. e Maturana H. La gran oportunidad: fin de la psiquis del liderazgo en el surgimiento de la psiquis de la gerencia co-inspirativa. Em revista da Universidade do Chile: "Estado, Gobierno y Gestión Pública" N° 10. Dezembro de 2008. (Escrito em 2006).

11 Recordemos a Lei sistêmica # 1: Cada vez que em um conjunto de elementos começam a serem conservadas certas relações, abre-se espaço para que tudo mude em torno das relações que se conservam.

12 A modulação recursiva do sentir do bem-estar com o fluir de mudança que se produz no sentir do organismo no curso de seu viver, é própria de todos os seres vivos nos que se dá o sentir do sentir que se vive.

13 Isto é aparente na mudança na configuração das relações de bem-estar que um organismo vive quando muda seu emocionar. As mudanças de espaço relacional que vemos nos organismos segundo seu emocionar são de fato mudanças na configuração  relacional de seu fluir no bem-estar que ocorrem em seu viver na dinâmica recursiva de seu emocionar. Cada vez que nos parece que um animal duvida sobre o curso de seu fazer, está em um ato recursivo de sentir seu sentir.



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